19/10/16

Silêncio e fala

José Tolentino Mendonça escreveu "o inapagável som do silêncio" (A Revista do Expresso, 3/9/2016) a partir da canção de Paul Simon “o som do silêncio” ela própria, inicialmente, votada ao silêncio, e que uma nova versão com os músicos de Bob Dylan deram origem ao sucesso que conhecemos.
"De facto, o mundo, este mundo que nos habituamos a identificar como estridente caixa sonora que nunca dorme, é atravessado por uma corrente de silêncios à espera de serem escutados. Há uma malha delicadíssima que segura silêncios milenares e recentes, silêncios indefinidos das profundezas e silêncios cuja morfologia se deteta na pele, silêncios siderais que abrem para o enigma dos grandes espaços e silêncios que costuram o mistério e a biografia do pequeno, do parcelar, do pessoal."

A nossa vida familiar e social é pontuada por crises normais e também por outras imprevisíveis. São crises de felicidade e crises de tristeza e luto. É nessas crises que se faz sentir com mais ou menos impacto o "som do silêncio".

Helena Sacadura Cabral em E nada o vento levou, conta algumas histórias de vida que são sublinhadas pelo silêncio:
1) o silêncio dentro de nós como, por exemplo, o silêncio no divórcio e separação:

"Nunca tinha reparado que no silêncio havia som, até que numa determinada noite percebi que ele existia mesmo. Tinha 30 anos e o meu marido acabava de levar os últimos livros da nossa casa. Tudo o resto já saíra... Passaram 50 anos e eu nunca mais esqueci o som do silêncio. Em especial daquele que veio, talvez, quem sabe?, de dentro de mim!" (p. 18)

2) e também a necessidade de silêncio dentro de nós que pode vir da meditação, da contemplação ou até do desejo pontual de vazio” (p. 47)

3) o silêncio que constrói o olhar: "Aprendemos na infância a ver com os olhos. Depois, à medida que vamos crescendo, vem a aprendizagem do olhar,que se faz com a nossa família, com os amigos e com aqueles que cruzam a nossa vida. Este olhar formata-se também nas ideologias que professamos - religiosas, sociais ou políticas - e que o irão inevitavelmente «condicionar»... O meu olhar, como o de outros, também se construiu através das artes, dos livros e do silêncio. Não se discute a importância dos dois primeiros. Mas dá-se menos valor ao silêncio, quando afinal, em muitos casos, os ultrapassa. É nesse silêncio que despojamos a vista de tudo o que é secundário e que conseguimos usá-la como se voltássemos a ser crianças." (p. 44)
4) o silêncio das palavras: "Todos os conhecemos, esses silêncios que falam encerrados num olhar, num gesto de ternura, numa mão que limpa uma lágrima, num abraço forte que se dá ou recebe e que mais não são do que formas de dizer a uma pessoa que a amamos e que não queremos vê-la sofrer. Ou, também, que ficamos felizes com a sua felicidade.
Sendo a palavra o meio de comunicar por excelência, o facto é que este tipo de gestos contém, dentro de si um mundo de silêncios que se sobrepõe a tudo o que poderia ser dito por palavras."(p. 95)

Mas há outros silêncios na vida familiar, originados ou acompanhados por fortes emoções como a vingança e a manipulação. Há pessoas que usam o silêncio para se vingarem ou para castigarem o marido, a esposa, os filhos.
O silêncio do casal passa muitas vezes pela prova do silêncio que começa com o que se chama “prender o burro” e acaba em comportamentos sado-masoquistas. Eu sofro em silêncio mas também te faço sofrer a ti.
É um jogo (Eric Berne) em que se procura permanecer em silêncio para ver quem cede primeiro e fala, como se o primeiro a ceder  fosse o derrotado.
Há silêncios tão complicados... quando resultam da vergonha e do medo da revelação de alguns comportamentos e acontecimentos problemáticos: o silêncio que envolve a violência doméstica, o abuso sexual e o silêncio da violência contra pessoas mais frágeis como as crianças e os idosos.
Os silêncios que violam os direitos humanos como certas tradições e os casamentos forçados ou as adopções forçadas. Estes silêncios não falam apenas, são silêncios que gritam. É preciso que alguém oiça. 

Voltando a Tolentino Mendonça: “O que ouvimos não esgota a extensão de tudo aquilo que neste momento nos está a ser dito. E pode mesmo acontecer que a parte mais significativa da conversa que cada um de nós mantém com a vida seja, neste momento, aquela que fica por escutar.”

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