27/09/23

Memória e internet - o "efeito google" *


A nossa memória é fascinante. Ela acompanha-nos desde sempre. É a memoria filogenética. Vem com os nossos genes e vai sendo acrescentada e modificada pelas experiências da nossa vida, pelos estímulos ambientais, o meio físico e social, a cultura, a educação. Temos memórias únicas e pessoais que podemos recuperar sempre que quisermos, desde que não tenham sofrido alterações e perturbações. Mas esta memória está sendo confrontada (e ameaçada ?) com outra memória: a internet, o google, a inteligência artificial (IA)... Até que ponto a internet está a mudar os nossos cérebros, os processos mentais e, em particular, a nossa memória? Que efeitos poderá ter o google na nossa memória e suas consequências nos processos cognitivos? Até que ponto podemos beneficiar ou não com os assistentes digitais de memória? Será que eles mudam a nossa forma de memorizar?

Qualquer pessoa pode pesquisar um assunto, utilizando o google, pela extrema facilidade com que se obtêm respostas, mesmo que manhosas ou até erróneas. Esta facilidade tem uma vantagem: poupa-nos o esforço de aprender e recordar mas também tem um problema: a informação não é registada na nossa memória pessoal biológica e neuronal mas antes na memória externa digital e artificial.
“A navegação na internet implica uma atividade multitarefa intensiva pelo que a rede pressupõe um sistema de interrupção da atenção sustida e focalizada. Estamos constantemente a mudar de objetivos com a atenção dividida e a controlar a interferência de estímulos.” (Emilio García García (2022), Memória - Recordar e esquecer, Biblioteca de Psicologia, p. 129)
Todos temos esta experiência: começamos a navegar e depressa deixamos os objetivos iniciais da nossa pesquisa para irmos atrás das ligações que são propostas pela internet, das sugestões que vão aparecendo no ecrã, das informações mais recentes que desfocalizam a nossa atenção e acabamos pesquisando assuntos pouco ou nada relacionados com aquilo que nos interessava e acaba numa perda de tempo,...

O cérebro digital de um computador é muito diferente do cérebro vivo de uma pessoa, assim como a memória externa e artificial é muito diferente da memória pessoal biológica. “O cérebro humano está constantemente a elaborar informação reconstruindo as memórias. Quando trazemos à memória de trabalho uma memória guardada a longo prazo, estabelecem-se novas ligações num contexto de experiência distinto e sempre novo. O cérebro que recorda já não é o mesmo que elaborou as memórias.” (p. 128)

O "efeito Google" ou "amnésia digital", é então um comportamento cada vez mais comum: o de confiar o armazenamento de dados importantes aos nossos dispositivos e à internet no lugar de guardá-los na cabeça.
O problema pode ser mais grave do que se imagina: além de recorrer à internet para guardar informações, muitas pessoas têm a impressão de que os dados online fazem parte de sua própria memória.

O mundo actual condiciona-nos a consumir uma enorme quantidade de informações, e a memória biológica não consegue lembrar-se de tudo. 
Portanto, usar essas ferramentas como um complemento pode ser de grande utilidade, mas deve ser feito com muita responsabilidade.
Ainda não podemos tirar conclusões sobre se o "efeito google" muda o nosso cérebro, como acontece com a leitura, por exemplo, mas o tempo dirá como foi esta mudança. (p. 130)



Até para a semana.

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* Hoje comemora-se o 25º aniversário do Google (1998-2023).



Rádio Castelo Branco
 

22/09/23

"A ilusão da eutanásia"


Faço uma longa citação do artigo do Dr. A. Lourenço Marques "Ilusão da eutanásia - Sobre as más condições em que geralmente se morre em Portugal, há um panorama trágico que urge ultrapassar", que de preferência deve ser lido na íntegra em Reconquista, 21-9-2023.

"...Deixar a morte natural acontecer - estando presentes, solidariamente, em tudo o que isto tem de significado, e cuidando - já pode ter outro sentido. Esta última opção é uma via que tem as marcas da ciência e do humanismo. Verdadeiramente, nestas situações, a aplicação da Medicina, no estado atual da Arte, com o mesmo vigor e empenho com que se aplica quando se pretende o resultado da cura que é viável, pode ter uma resposta positiva do ponto de vista humano. Porque a Medicina é ampla. Com uma história muito antiga, está em permanente progresso, e chegou, hoje, a importantes conquistas que contribuem substancialmente para a melhoria da vida das pessoas que adoecem, e em qualquer fase da doença: curando, quando é possível; aliviando, que é um imperativo; e sempre confortando. A medicina vai até ao fim. A especialidade dos Cuidados Paliativos, os cuidados específicos no sofrimento das pessoas com doenças que determinam a morte natural, assumiu a envergadura de qualquer outra especialidade médica. Só que, na nossa organização, em Portugal, predominantemente arquitetada para a doença aguda, o cuidado apropriado do tempo do fim da vida com doença crónica (período variável) tem penetrado com muita dificuldade. A avaliação disponível que temos, é que num universo de cerca de 90 mil pessoas, necessitadas de Cuidados Paliativos, que morrem, anualmente, entre nós, menos de 30 mil têm acesso aos cuidados indicados pela Arte. Pensemos, por exemplo, que de todos os doentes com indicação para cuidados intensivos, em Portugal, só 30% teriam acesso! Seria um sonoro escândalo! 
Em meados do século passado, os Cuidados Paliativos começaram no Reino Unido. No mesmo país, cerca de 20 anos depois, em 1987, ganharam o estatuto de especialidade médica. 
Portugal está atrasado. A primeira iniciativa concretizada com internamento para doentes terminais com cancro, data de 1992, no Hospital do Fundão. Portanto, 25 anos depois do pioneiro Reino Unido. O percurso, cá, cheio de embaraços. E só em 2014, a Ordem dos Médicos concluiu o primeiro passo do reconhecimento profissional, que foi a atribuição do grau de competência médica à Medicina Paliativa. Ora, sabendo que a Lei da Eutanásia é feita para um país em que esta condição básica, que é a universalidade do acesso aos Cuidados Paliativos, não está cumprida, tenho o direito de julgar que essa Lei é inoportuna. E mais. Acho mesmo que cria a ilusão de que estamos no caminho certo da solução do sofrimento dos doentes, com doenças incuráveis, que se aproximam da morte, quando, na realidade, de tudo o resto (que está universalmente consensualizado) para responder a esta questão, estão arredados, grosso modo, dois terços dos potenciais candidatos. Do meu ponto de vista, o meio político dominante tem dado ares de não ter convicções sobre o que verdadeiramente está em causa. Lamento!"






20/09/23

Erros que os professores não cometem com os seus filhos


Deixem-me fazer uma breve nota sobre a minha participação neste programa de “Opinão” da Rádio Castelo Branco (RACAB). Em 2007, iniciei esta rubrica de colaboração. Há, portanto, 16 anos. Vamos continuar a falar de psicologia, de pedagogia ou simplesmente de assuntos do quotidiano vistos numa perspectiva psicológica ou educativa ...

No mês de Setembro é o regresso à escola. É nesta altura que muitas questões se colocam sobre os papéis da família, dos professores e dos alunos e sobre o relacionamento entre família e escola. 
“Os pais e os professores lutam pelo mesmo sonho: tornar seus filhos e alunos felizes, saudáveis e sábios. Mas jamais estiveram tão perdidos na árdua tarefa de educar.” (Augusto Cury, Pais brilhantes, Professores fascinantes)
O pais e os professores... Provavelmente, porque também se preocupam cada vez mais com a educação dos filhos e alunos e também porque a colaboração entre a escola e a família se afigura cada vez mais como uma necessidade para melhorar os resultados do desenvolvimento e aprendizagens dos alunos. *

Foram perguntar a alguns professores que também têm filhos alunos que erros não cometeriam com os próprios filhos depois de terem trabalhado como professores.** Se em casa de ferreiro espeto de pau, como diz o ditado, será que podemos ver a sua opinião como uma referência para melhorar esse relacionamento? Estou em crer que sim.

1. A superprotecção e desresponsabilização da criança
Não ser um pai ou uma mãe helicóptero pairando sobre os filhos à espera de intervir sempre que sentirem necessidade. “É claro que, quando as crianças são pequenas, precisam de mais envolvimento dos pais, mas o objetivo é que os pais – e os professores – atribuam cada vez mais responsabilidades aos alunos à medida que vão crescendo”.

2. Opor-se sistematicamente ao professor
Trata-se aqui de um problema de modelagem. Podemos ter uma opinião desfavorável de um professor ou até estarmos zangados com um professor, mas o seu filho nunca deveria saber exatamente como a mãe ou o pai se sente nem envolver o filho na questão. 
Se desrespeitar um professor, é provável que seu filho o imite. 
Infelizmente sabemos como este comportamento é frequente nas nossas escolas.

3. Não se envolver e não apoiar os filhos
Ao contrário do que fazem os pais helicóptero, é importante responsabilizar as crianças, fazê-las ganhar autonomia e confiar nos professores. No entanto, continua a ser essencial o forte apoio dos pais, ou seja, não perder o interesse, não relaxar, se surgirem dificuldades nas aprendizagens tentar entender como fazê-las melhorar.

4. Fazer promessas vazias e falsas
Conhecemos a alegria e o entusiasmo de alguns dos alunos ao falar sobre um evento especial prometido por seus pais mas também sabemos da decepção quando não cumprem as promessas. Este comportamento repetido leva à desconfiança dos pais e ao descrédito nas suas promessas.

5. Outro erro é os filhos não acompanharem a família quando os pais têm alguns dias de férias, a menos que de todo seja impossível. Estes dias de faltas à escola são recuperáveis... e a experiência e o tempo com a família são muito mais importantes.

Até para a semana. 


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E é ainda por isso que não faz sentido continuar a haver quem ache que a família educa e a escola ensina. Como tenho escrito, há muitas áreas do currículo em que deve haver colaboração, ou seja, em que há aspectos específicos da responsabilidade dos pais ou dos professores mas também aspectos comuns: o que se pode fazer em casa é completar o que faz a escola e, noutros casos, a escola complementa o que se faz na família.


 
 
Rádio Castelo Branco


 

04/09/23

Jovens que gostam de música antiga


Fui ao concerto final, em 2 de setembro, dos Cursos Internacionais de Música Antiga - CIMA 2023, na Sé de Idanha-a-Velha

Não deixa de ser curioso que no meio de tanta agitação, diversidade de apelos do que está na ordem do dia, do consumo, dos media, e do vazio... haja jovens que se interessem e gostem de música antiga e que venham estudar num sítio longe dos grandes roteiros turísticos de Verão. Um grande aplauso só por isto.

"Barroco. Esta palavra vaga, de ressonâncias pejorativas, encontra-se revalorizada, nos nossos dias, sob a forma mais autêntica e mais refinada. Mais ou menos conhecida do público, antes de 1950, a música barroca tornou-se o objecto mais precioso de deleite do amador esclarecido: encontram-se contrastes inesperados, coros de anjos, timbres raros, e a indústria do disco procura nela best-sellers." (História da Música Clássica, vol I, Barroco e Classicismo, pag. 27)

Do programa fizeram parte:
Valentini, Giuseppe (1681-1753)
Hotteterre, Jacques-Martin (1674-1763)
Telemann, Georg Philipp (1681-1767)
Senaillé, Jean Baptiste (1687-1730)
Boismortier, Joseph Bodin de (1689-1755)
Monteverdi, Claudio (1567-1643)
Leclair, Jean-Marie (1697-1764)
Chedeville, Nicolas (1705-1782)
Bach, Johann Sebastian (1685-1750)
Rameau, Jean-Philippe (1683-1764)

Uma das peças apresentadas foi "Les Indes Galantes" ("Forêts paisibles") de Jean-Philippe Rameau.