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01/06/25

Os anjos vão dormir...



Os anjos vão dormir...


Os anjos vão dormir: a noite cai
mas libertam os astros para desvendarem
o que apaixona os homens sobre a terra,
que gritos soltam estes, como fazem guerras
e criam desencontros de hora a hora
e se atropelam sem real razão.

Pena que a escuridão seja tão longa,
que o reinado de estrelas não dissipe
o negro tenebroso da maldade:
o breu a consumir cabal alívio
ou confiança no florescimento.

Como saber se os anjos   quand' aurora
virão, calmos de sono, despertar-nos ?

António Salvado, Repor a luz

 

Mais um dia 1 de Junho em que se comemora o Dia Mundial da Criança. Assinalado, pela primeira vez, em 1950, por iniciativa das Nações Unidas, com o objetivo de chamar a atenção para os problemas das crianças, mantém-se mais necessário do que nunca quando vivemos, principalmente as crianças, com "o negro tenebroso da maldade: o breu a consumir cabal alívio ou confiança no florescimento".



24/04/25

Um caminho a continuar



Francisco veio de longe para ficar perto. Ficar perto dos mais vulneráveis. E este é um dos papéis que o Papa Francisco assumiu e que mais me tocou neste tempo que durou o seu pontificado.
Encontramos, certamente, diferenças com outros que o antecederam mas também continuidade. É o que acontece em relação à violência sexual contra crianças, jovens e pessoas vulneráveis. Se Bento XVI já tinha objectivado o papel da Igreja na eliminação deste grave problema da Igreja e da sociedade (Luz do mundo – O Papa, a Igreja e os Sinais dos Tempos – Uma conversa com Peter Seewald), foi Francisco que convocou a Cimeira no Vaticano sobre a protecção dos menores na Igreja (21 a 24-2-2019).
Também as Comissões diocesanas de prevenção e protecção de menores e pessoas vulneráveis foram criadas na sequência da publicação, pelo Papa Francisco, em 9-5-2019, da Carta Apostólica “Vos estis lux mundi” (“Vós sois a luz do mundo”) sobre a violência sexual no seio da igreja Católica. 

A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) decidiu criar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal, na Assembleia Plenária de novembro de 2021. A Comissão Independente apresentou em 13-2-2023, o Relatório da investigação efectuada. 


Em 5-2-2022, as Comissões Diocesanas, reunidas em Fátima, tomaram a decisão de criar a Equipa de Coordenação Nacional (ECN), integrando representantes das províncias eclesiásticas de Braga, de Lisboa e de Évora.

A CEP, na Assembleia Plenária de 25-28 de Abril de 2023, criou o Grupo VITA, apresentando-se como um organismo “isento e autónomo que visa acolher, escutar, acompanhar e prevenir as situações de violência sexual de crianças, jovens e adultos vulneráveis no contexto da Igreja Católica em Portugal, numa lógica de intervenção sistémica”. Entrou em funcionamento em 22-5-2023 e tem vindo a apresentar Relatórios de Actividades semestralmente.

 

Tendo em vista uniformizar procedimentos e garantir a adequada articulação entre VITA, ECN, Comissões diocesanas, Procuradoria-Geral da República, assim como  a actuação no apoio psicológico, psiquiátrico e espiritual das vítimas e agressores, em 16-11-2023, a CEP aprovou o “Guia de Boas Práticas” para o tratamento de casos de abuso sexual de menores e adultos vulneráveis, no contexto da Igreja Católica.

 

Em 25-7-2024, a CEP divulgou o Regulamento para atribuição de compensações financeiras às vítimas de abusos sexuais, que prevê a criação de duas comissões, a Comissão de instrução e a Comissão de fixação da compensação. Estão em curso estes procedimentos.

A CEP, na Assembleia Plenária de Novembro, aprovou uma Adenda com algumas clarificações ao processo das compensações financeiras, e também o alargamento do prazo de apresentação dos pedidos até 31-3-2025.


Em todo o país têm vindo a ser tomadas medidas de prevenção primária, tais como Ações de Formação para os diversos Agentes pastorais e a criação de mapas de risco e de códigos de conduta nos diversos sectores de intervenção da Igreja.


Esta breve nota histórica sobre a prevenção e protecção de menores e adultos vulneráveis no seio da Igreja Católica releva, no contexto atual de funcionamento das Comissões Diocesanas, a necessidade de articulação e cooperação entre as várias entidades com responsabilidades nesta área: as Comissões diocesanas, o Grupo VITA, a ECN, a CEP e as Dioceses.

Manifesta também o caminho percorrido e a percorrer na prestação de um serviço que deve dar confiança, segurança e cuidado a todas as vítimas de abuso dentro da Igreja. Pode ainda ser sugestivo daquilo que é necessário fazer na sociedade.

 

 




Rádio Castelo Branco







28/11/24

Resiliência


A palavra resiliência tem vindo a ser usada com grande frequência e em diversos contextos. Encontrou adeptos no domínio social, comportamental e cognitivo, e em psiquiatria, psicologia clínica e psicopatologia. Também a sociologia e a etologia usam este conceito... (M. Anaut, p. 50) 
Até serviu para dar título a um programa comunitário para “Recuperar Portugal” na pós-pandemia: o conhecido PRR - Plano de Recuperação e Resiliência.
E a Estée Lauder tem um creme para a pele com as características: Hidratação, anti-envelhecimento, iluminador, nutrição, protecção contra influências externas, de nome Resilience multi-effect.
Na física, a palavra resiliência corresponde às propriedades de resistência de um material, ou seja, a sua capacidade de retornar ao estado original, após sofrer diferentes pressões. 
Para a psicologia uma pessoa será resiliente quando é capaz de voltar ao seu estado habitual após passar por uma experiência difícil ou traumática.

Deve-se à psicóloga americana Emmy Werner, o principal papel no início do estudo da resiliência como resultado “de um equilíbrio evolutivo entre o confronto com elementos nefastos ou stressantes do meio, a vulnerabilidade e os factores de protecção do sujeito, internos (temperamento, capacidades cognitivas, autoestima... ) e externos (fontes não oficiais de apoio, tais como a família alargada, o bairro e os recursos comunitários)”. (p. 48-49)

A resiliência é um assunto que me tem interessado particularmente dadas as interacções que tem com os Bons Tratos 
De facto, um eixo da pesquisa sobre a resiliência tem vindo a estudar os bons tratos. 
Os bons tratos (que não significam apenas a ausência de maus tratos) são um processo e não um estado e pode ser comparado ao conceito de qualidade de vida, compreendendo elementos objectiváveis e aspectos subjectiváveis
Trata-se de um processo federador, de que faria parte a resiliência, o empowerment, sentimento de coerência e coping e pode aplicar-se a lares com bons tratos. (Detraux (2002) citado por Anaut, p. 79)

A resiliência tem sido estudada como:
- uma capacidade, traço de personalidade, resultado de um funcionamento
- equilíbrio entre factores de risco e factores de protecção
- processo adaptativo dinâmico
- não perene, pois trata-se de um processo
- a curto prazo (resposta ao traumatismo) e longo prazo
- estrutural (tem a ver com a atitude face à adversidade, quotidiana..) e conjuntural que resulta do confronto com o traumatismo externo, maciço e único 
- processo psíquico: processo em que os organizadores psíquicos se mobilizam para ajudarem no tratamento traumático...

Haverá um perfil resiliente?
De acordo com Cyrulnyk (referido por Anaut) um indivíduo resiliente teria uma estrutura composta pelas seguintes características:
- QI elevado
- Autonomia e eficácia nas relações com o meio
- Percepção do seu próprio valor
- Boa capacidade de adaptação relacional e de empatia
- Capaz de prever e planificar
- Sentido de humor

Segundo Rutter (citado por Anaut), há três características principais nas pessoas que desenvolvem um comportamento de resiliência perante as condições psicossociais desfavoráveis:
- A consciência da sua autoestima (ou autovalorização e do sentimento de Si)
- A consciência da sua eficácia
- Um repertório de formas de resolução de problemas sociais. 
A autoestima compreende uma disposição mental que prepara o indivíduo para reagir segundo as expectativas de êxito.
A autoeficácia leva o indivíduo a ter a convicção de que tem as capacidades necessárias para ter êxito numa determinada tarefa.

Então quem se sente capaz, válido, importante, tem amor de si, visão de si e confiança em si, e tem apoio nas suas experiências familiares e sociais positivas... é porque é resiliente.



Até para a semana.


 

 

 Rádio Castelo Branco 

 

 



14/11/24

A prevenção primária da violência sexual de crianças e pessoas vulneráveis



Em 2019, o Papa Francisco, pediu acção para erradicar o problema do abuso sexual de menores: 
“Chegou a hora de colaborarmos, juntos, para erradicar tal brutalidade do corpo da nossa humanidade, adotando todas as medidas necessárias já em vigor a nível internacional e a nível eclesial.” (Discurso final do Papa Francisco - Encontro sobre a proteção de menores na Igreja - 2019)

A melhor maneira de começar a agir é desenvolver medidas de prevenção da violência sexual. 
A prevenção começa na sensibilização para o tema da violência sexual e para o seu impacto negativo, não apenas nas vítimas, mas também nas suas famílias e em toda a comunidade.
Quando falamos em prevenção primária ou universal falamos em agir antes de o perigo existir. Proteger, procurando minimizar os factores de risco associados à problemática da violência sexual, ao mesmo tempo que se promovem factores de protecção.

Os temas habitualmente abordados nesta sensibilização, são fundamentais para alertar para o que se pode ou não fazer:
· Corpo – conhecer o corpo humano e os conceitos de partes privadas e não privadas;
· Toques – saber distinguir entre toques adequados e desadequados e conhecer os limites dos toques, independentemente da cultura ou do estatuto de quem toca;
· Segredos – compreender a diferença entre segredos bons (associados a emoções agradáveis, como a alegria) e segredos maus (que geram emoções desagradáveis, como o nojo, a raiva, a vergonha ou a culpa, e que estão muitas vezes associadas a situações de ameaça);
· “Saber dizer sim e dizer não” – ou seja um tema que salienta a importância em fomentar um pensamento crítico e a assertividade nas crianças e jovens;
· Pedir ajuda – saber identificar situações de risco e desenvolver competências para revelar, quebrando o silêncio habitualmente associado às situações abusivas... (1)

O Grupo VITA, para além do trabalho de acolhimento, escuta e acompanhamento das vítimas tem sido fundamental para a formação neste âmbito, em primeiro lugar dos elementos das Comissões diocesanas, formação essa já concretizada, e depois de todos os Agentes pastorais, designadamente os que trabalham com crianças e adultos vulneráveis.
Merece destaque a coordenação e a equipa executiva do Grupo VITA que integra técnicos com particular experiência nesta área e que têm sido incansáveis e disponíveis para partilharem o seu saber através destas acções de formação e dos instrumentos de trabalho pedagógico que tem publicado.

Prevenir é também sabermos utilizar instrumentos ao nosso dispor como os mapas de risco e a adopção de códigos de conduta e boas práticas, que permitem saber o que é proibido fazer, o que é um risco fazer e aquilo que se pode e se deve fazer. 
Há necessidade urgente de passarmos do tratamento e reparação dos maus tratos e dos abusos para a prevenção dos riscos e para a prática do direito ao afecto, criando ambientes seguros para todos e promovendo os bons tratos e a resiliência.

Se assim for, as instituições, as famílias e as escolas poderão passar a ser verdadeiras Comissões de Protecção de Crianças e Pessoas Vulneráveis.



Até para a semana

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(1) Joana Alexandre, "Violência sexual no contexto da Igreja Católica – prevenção e ação", Público, 21-8-2023.





Rádio Castelo Branco



12/10/23

Para um pouco de paz...



Voltamos a fazer a pergunta: "Porquê a guerra?", que qualquer ser humano poderá fazer perante a tragédia das guerras que estamos a viver, mesmo de longe, e que nos vão deixando mais frágeis na nossa saúde psicológica e bem-estar.

Segundo a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP)*: A guerra afecta-nos a todos directa ou indirectamente. O horror da violência, do desrespeito pela dignidade e pelos direitos humanos, tem um impacto destruidor em muitas vidas e comunidades, gera sofrimento nas pessoas e nas famílias...
Todos reagimos de forma diferente a estes acontecimentos perturbadores e cada um de nós tem capacidades e formas diferentes de lidar com emoções e sentimentos desagradáveis. 
Algumas pessoas conseguirão mais rapidamente sentir maior controlo das suas emoções, outras demorarão mais tempo. Algumas pessoas conseguirão fazê-lo sozinhas, outras precisarão de ajuda. 

Ambas as reacções são respostas comuns à situação de crise que vivemos:
- É natural que nos sintamos “em choque”, que tenhamos uma sensação de “descrença” face ao que está a acontecer. Podemos ficar apáticos e “emocionalmente entorpecidos” com esta situação. 
- É natural que nos sintamos preocupados, ansiosos, stressados, assustados, angustiados, tristes, com medo. E também irritados, zangados, impotentes. Também podemos sentir dificuldade em concentrarmo-nos, em tomar decisões ou em dormir. 
- É natural que tenhamos receios e dúvidas acerca do futuro (Quanto tempo vai durar a Guerra? O que vai acontecer? Que consequências terá?). 

Apesar destas reacções e dificuldades que podemos sentir, 
- Também podemos adaptar-nos, podemos contribuir com aquilo que está ao nosso alcance: 
- Podemos aceitar as nossas emoções e sentimentos. É totalmente natural sentirmos muitas emoções e sentimentos diferentes. É perfeitamente razoável chorar, se sentirmos vontade de o fazer 
- Podemos utilizar estratégias de gestão da ansiedade e do stresse. 
- Limitar a nossa exposição a notícias. Não passar o dia a ver e ouvir as notícias e os telejornais...
- Consultar fontes credíveis de informação e combater a desinformação. Demasiada informação não é sinónimo de informação útil ou até, por vezes, factual e verdadeira. É importante consultar apenas fontes de informação credíveis e actualizadas e não ler apenas títulos ou rodapés...
- Evitar estereótipos. Ser ofensivo ou emitir juízos de valor sobre pessoas, comunidades são uma forma de aumentar a violência e favorecer a discriminação e a exclusão social. 
- Evitar pensamentos “catastróficos”. É preferível viver no presente, um dia de cada vez. Procurarmos ser flexíveis e criativos, adaptando-nos, às mudanças e desafios que esta situação de incerteza nos coloca. 
- Falar com familiares e amigos e reforçar as nossas relações. 
- Continuar a desenvolver a nossa vida como habitualmente.
- Desenvolver a nossa resiliência. 
- Manter as rotinas.
- Realizar actividades de lazer. 
- Investir no autocuidado. 
- Alimentar a esperança. 
- Apoiar e contribuir para ajudar quem está a sofrer mais com esta situação.
- Procurar ajuda médica ou psicológica, se necessário.

E, finalmente, podemos ter algum cuidado com as crianças explicando o que está a acontecer de forma que entendam a desgraça da guerra mas sem criar situações de ansiedade.


Até para a semana, com muita paz.

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Rádio Castelo Branco





27/09/23

Memória e internet - o "efeito google" *


A nossa memória é fascinante. Ela acompanha-nos desde sempre. É a memoria filogenética. Vem com os nossos genes e vai sendo acrescentada e modificada pelas experiências da nossa vida, pelos estímulos ambientais, o meio físico e social, a cultura, a educação. Temos memórias únicas e pessoais que podemos recuperar sempre que quisermos, desde que não tenham sofrido alterações e perturbações. Mas esta memória está sendo confrontada (e ameaçada ?) com outra memória: a internet, o google, a inteligência artificial (IA)... Até que ponto a internet está a mudar os nossos cérebros, os processos mentais e, em particular, a nossa memória? Que efeitos poderá ter o google na nossa memória e suas consequências nos processos cognitivos? Até que ponto podemos beneficiar ou não com os assistentes digitais de memória? Será que eles mudam a nossa forma de memorizar?

Qualquer pessoa pode pesquisar um assunto, utilizando o google, pela extrema facilidade com que se obtêm respostas, mesmo que manhosas ou até erróneas. Esta facilidade tem uma vantagem: poupa-nos o esforço de aprender e recordar mas também tem um problema: a informação não é registada na nossa memória pessoal biológica e neuronal mas antes na memória externa digital e artificial.
“A navegação na internet implica uma atividade multitarefa intensiva pelo que a rede pressupõe um sistema de interrupção da atenção sustida e focalizada. Estamos constantemente a mudar de objetivos com a atenção dividida e a controlar a interferência de estímulos.” (Emilio García García (2022), Memória - Recordar e esquecer, Biblioteca de Psicologia, p. 129)
Todos temos esta experiência: começamos a navegar e depressa deixamos os objetivos iniciais da nossa pesquisa para irmos atrás das ligações que são propostas pela internet, das sugestões que vão aparecendo no ecrã, das informações mais recentes que desfocalizam a nossa atenção e acabamos pesquisando assuntos pouco ou nada relacionados com aquilo que nos interessava e acaba numa perda de tempo,...

O cérebro digital de um computador é muito diferente do cérebro vivo de uma pessoa, assim como a memória externa e artificial é muito diferente da memória pessoal biológica. “O cérebro humano está constantemente a elaborar informação reconstruindo as memórias. Quando trazemos à memória de trabalho uma memória guardada a longo prazo, estabelecem-se novas ligações num contexto de experiência distinto e sempre novo. O cérebro que recorda já não é o mesmo que elaborou as memórias.” (p. 128)

O "efeito Google" ou "amnésia digital", é então um comportamento cada vez mais comum: o de confiar o armazenamento de dados importantes aos nossos dispositivos e à internet no lugar de guardá-los na cabeça.
O problema pode ser mais grave do que se imagina: além de recorrer à internet para guardar informações, muitas pessoas têm a impressão de que os dados online fazem parte de sua própria memória.

O mundo actual condiciona-nos a consumir uma enorme quantidade de informações, e a memória biológica não consegue lembrar-se de tudo. 
Portanto, usar essas ferramentas como um complemento pode ser de grande utilidade, mas deve ser feito com muita responsabilidade.
Ainda não podemos tirar conclusões sobre se o "efeito google" muda o nosso cérebro, como acontece com a leitura, por exemplo, mas o tempo dirá como foi esta mudança. (p. 130)



Até para a semana.

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* Hoje comemora-se o 25º aniversário do Google (1998-2023).



Rádio Castelo Branco
 

18/11/22

"Uma em cada cinco crianças"


A decisão de dedicar o dia 18 de novembro à proteção das crianças contra a exploração sexual e abuso sexual resulta da campanha do Conselho da Europa “One in five” associada a um estudo que revelou que uma em cada cinco crianças na Europa é vítima de alguma forma de violência ou exploração sexual. A violência sexual contra as crianças pode assumir várias formas: abuso sexual no círculo familiar ou fora dele, pornografia e prostituição infantil, corrupção e solicitação sexual ou aliciamento sexual via internet.



11/11/22

Prevenção dos abusos sexuais


Ao mesmo tempo que se faz justiça e se reparam os danos sofridos em relação ao passado, é necessário criar mecanismos para uma cultura de prevenção em que não seja possível repetir-se esta prática criminosa. Essa cultura é a dos bons tratos e da resiliência. (1)
O “Discurso Conclusivo do Papa Francisco” na Cimeira do Vaticano, em 2019, sobre a protecção dos menores na Igreja, coloca o problema nas justas e várias dimensões envolvidas.
Para Francisco uma explicação positivista não é suficiente porque não é capaz de nos indicar o significado e hoje precisamos explicações e significados. Explicações ajudar-nos-ão imenso no sector operativo mas... é necessário ter em conta a manifestação atual do espírito do mal...

Que fazer? “O objetivo da Igreja será ouvir, tutelar, proteger e tratar os menores abusados... acima de todas as polémicas ideológicas e as políticas jornalísticas”…
“encontrar o justo equilíbrio de todos os valores em jogo e dar diretrizes uniformes para a igreja, evitando os dois extremos, nem judicialismo provocado pelo sentimento de culpa, face aos erros passados, e pela pressão do mundo mediático, nem autodefesa que não enfrente as causas e as consequências deste grave delito."

Francisco refere um modelo de boas práticas de várias agências internacionais, da Organização Mundial de Saúde, designado INSPIRE. (2) Com base neste modelo e no trabalho que tem vindo a ser desenvolvido na Igreja propõe sete estratégias para acabar com a violência contra as crianças:
1. A tutela das crianças: cujo “objetivo primário das várias medidas é proteger os pequeninos e impedir que caiam vítimas de qualquer abuso psicológico e físico. Portanto, é necessário mudar a mentalidade combatendo a atitude defensivo-reativa de salvaguardar a Instituição, em benefício duma busca sincera e decidida do bem da comunidade, dando prioridade às vítimas de abusos em todos os sentidos.”
2. Seriedade impecável: para entregar à justiça toda a pessoa que tenha cometido tais delitos. 
3. Uma verdadeira purificação: é necessário impor um renovado e perene empenho na santidade dos pastores. Na realidade, não devemos cair na armadilha de acusar os outros, que é um passo rumo ao álibi que nos separa da realidade.
4. Formação: Deve-se ter em conta as exigências de selecção e formação dos candidatos ao sacerdócio...
5. Reforçar e verificar as diretrizes das Conferências Episcopais: "Normas e não somente diretrizes. Nenhum abuso deve jamais ser encoberto (como era habitual no passado) e subestimado"... 
6. Acompanhar as pessoas abusadas: “o mal que viveram deixa nelas feridas indeléveis que se manifestam também em rancores e tendências à autodestruição. Por isso, a Igreja tem o dever de oferecer-lhes todo o apoio necessário, valendo-se dos especialistas neste campo.”
7. O mundo digital: deve-se ter em conta as novas formas de abuso sexual. O mundo digital e o uso dos seus instrumentos com frequência incidem mais profundamente do que se pensa...
8. O turismo sexual: “anualmente, segundo os dados 2017 da organização Mundial de Turismo, 3 milhões de pessoas no mundo viajam para ter relações sexuais com um menor... Estamos, pois, diante de um problema universal e transversal que infelizmente existe em quase toda a parte.” (3)


Até para a semana.



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(1) Se calhar estou mesmo a fantasiar um mundo que não vai existir... A realidade é que  mais informação e mais discussão sobre o assunto nem sempre se traduzem em redução dos casos mas antes manutenção ou até aumento. Mesmo assim, "devemos privilegiar  uma cultura preventiva, de natureza universal, atuando sobre os factores de risco associados aos maus tratos, minimizando-os, ao mesmo tempo que se potenciam factores protectores". (Rute Agulhas, "P.R.E.V.E.N.I.R. O abuso sexual de crianças e adolescentes", Observador).

(2) "INSPIRE é um recurso baseado em evidências para todos aqueles que estão comprometidos com a prevenção e a resposta à violência contra crianças – de governos a pessoas comuns, da sociedade civil ao setor privado. Consiste em um grupo selecionado de estratégias baseadas nas melhores evidências disponíveis para ajudar os países e as comunidades a concentrar esforços em programas e serviços de prevenção que sejam dotados de um maior potencial para redução da violência contra crianças."
INSPIRE (2016) - Sete Estratégias para pôr fim à violência contra criançasImplementação e vigilância do cumprimento das leis; Normas e valores; Segurança do ambiente; Pais, mães e cuidadores recebem apoio; Incremento de renda e fortalecimento económico; Resposta de serviços de atenção e apoio; Educação e habilidades para a vida.

(3) Para combater este fenómeno é necessária repressão judicial, mas também apoio e projetos para a reinserção das vítimas. Vão nesse sentido a Resolução do Parlamento Europeu, as alterações ao Código Penal, a Convenção do Conselho da Europa (Convenção de Lanzarote), sobre este assunto, instrumentos legais que, espera-se, pelo menos possam levar a diminuir esta criminosa e  hipócrita prática. 






27/10/21

Tempo para bons tratos

  

Daqui



A perspectiva positiva do desenvolvimento psicológico, do direito ao afecto e dos bons tratos que as crianças necessitam, mostra como ainda estamos longe da protecção que  devem merecer, apesar da evolução legislativa, social e cultural.

Ao longo da história, as crianças têm sido vítimas de toda a espécie de maus tratos que vão do infanticídio até às mais vis formas de tráfico humano. A história da infância é um longo caminho de violência contra as crianças (De Mause).

A pedofilia e o incesto fazem parte dessa história de maus tratos mesmo quando  as instituições que  deviam ter um papel de protecção, como a família, igreja e escola, elas próprias foram e são também violentadoras das crianças.

 

Em 2019, a conferência dos bispos de França propôs ao senador Jean-Michel Sauvé criar uma comissão sobre a dimensão do fenómeno dos abusos sexuais. Nascia, assim, a Comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja (Ciase). (1)

Após dois anos e meio de trabalho, a Comissão publicou  o relatório em que foram investigados os casos de abuso ao longo de um  período de 70 anos, entre 1950 – 2020.

Os resultados (2) são uma estimativa baseada no censo e na análise dos arquivos (Igreja, justiça, polícia judiciária e imprensa) e nos testemunhos recebidos pela Comissão.

Esta estimativa refere números assustadores. Em França, houve entre 2.900 e 3.200 padres ou religiosos da Igreja Católica que cometeram crimes de abuso sexual (pedofilia), durante este período de 70 anos.

Refere o relatório que foram abusadas um total de 216 mil pessoas (com uma margem de erro de 50 mil). Se forem incluídas as agressões cometidas por leigos esta estimativa sobe para 330 mil pessoas.

Infelizmente os números dos abusos sexuais são ainda mais perturbadores se pensarmos que, em toda a sociedade francesa, cinco milhões e meio de pessoas (14,5% das mulheres e 6,4% dos homens) haviam sofrido violência sexual antes dos 18 anos de idade. 

As famílias e amigos ainda são os principais contextos dos abusos, mas a prevalência de agressões na Igreja católica continua alta, mesmo em tempos recentes.


Chocante é também a indiferença com que estes casos foram olhados não só dentro da Igreja mas na sociedade. A pergunta é: como foi possível? Certamente teve que haver muita gente a olhar para o lado para que as coisas fossem acontecendo sem serem denunciadas. Mesmo que a denúncia envolva complexidade, sofrimento, e medo e, por isso, tenda a ser protelada, é difícil compreender como foi possível silenciar os abusos durante tanto tempo.

 

A iniciativa tomada pela Igreja relativamente a este assunto é também de salientar, no sentido de terminar os abusos mas também de prevenir e proteger as crianças desta forma de violência. 

O século XX foi considerado a “era da criança” (3). É, por isso, tempo de parar os abusos e a violência contra as crianças. Mas se não é possível pôr termo à maldade humana, é preciso que toda a sociedade não fique indiferente à "dor invisível" das crianças abusadas (Barudy). Elas merecem um  tempo novo na sua história, o tempo dos bons tratos.

 

 Até para a semana.


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(1) Prisca Borrel, "Église et pédophilie: oser témoigner", Le cercle Psy, nº 35, pags 74-75

(2) São os resultados referidos pela comunicação social, p. ex. em: O pesar do Papa pelo Relatório sobre os abusos na Igreja na França.

(3) A Origem dos Maus-Tratos: Revisão Sobre a Evolução Histórica das Perceções de Criança e Maus-Tratos.







 

14/05/20

Controlar as emoções destrutivas

Estamos tristes e sensibilizados com mais um caso de maus tratos que vitimaram uma criança de 9 anos.
E, novamente, nos interrogamos sobre a violência do ser humano no relacionamento com as crianças.* 

Mas o que já sabemos sobre estas tragédias do ponto de vista sistémico ajuda-nos na compreensão destes casos. 
O filicídio materno e ou paterno é um acontecimento de grande complexidade mas, mesmo assim, podemos estabelecer os perfis das vítimas e dos criminosos. Há muitas semelhanças mas também algumas diferenças entre os abusadores maternos e paternos.**

Tanto quanto sabemos a situação socio-familiar tinha tudo para correr mal.

Em geral, nestas situações encontramos:
- familias disfuncionais com problemas relacionais e familiares: separações, divórcios, violência doméstica, ciúmes, litígio pela regulação das responsabilidades parentais;
- história anterior de maus-tratos infligidos contra os filhos e relacionamentos emocionais desajustados, de que a fuga da criança seria um sinal a valorizar;
- contexto de toxicodependência;
- condições socio económicas desfavoráveis: desemprego, dificuldades financeiras;
- comportamento antissocial, comportamento agressivo e história de condenações anteriores;
- As vítimas são sujeitas a modelos de maus tratos intrafamiliares.

Neste caso, também não ajudou a circunstância de confinamento imposta pela covid-19 e a necessidade de acesso à internet para continuar as aprendizagens escolares de forma não presencial.
A escola para estas crianças funciona quase sempre como um factor de protecção e está em condições de perceber muitos sinais de perigo que as crianças nos dão.
Este conjunto de vulnerabilidades podem ser comuns à vida familiar de muitas outras crianças. A dificuldade está em perceber até onde os factores de risco podem ser contrabalançados com os factores de protecção.

E isto nem sempre é fácil de interpretar para quem trabalha com estas situações podendo-se cometer erros de subavalição que levam a desfechos trágicos.
Sem dúvida que a avaliação das competências parentais, dos factores de risco e dos factores de protecção não podem ser minimizados em qualquer circunstância e em especial quando se trata de confiar a educação da criança aos progenitores ou a um deles.
Como costumamos dizer cada caso é um caso e não deve haver uma regra preferencial para atribuição do poder parental. Sem dúvida que é desejável a guarda partilhada, porém essa pode ser a decisão errada.

O que podemos fazer para que este mal seja erradicado da nossa sociedade? Há medidas que abrangem vários sectores mas a educação na família e na escola é fundamental.
Educar com o coração** ou seja educar as competências emocionais para poder ser capaz de controlar as emoções destrutivas .
Os próprios pais devem reconhecer que quando não são competentes para educar os filhos devem pedir ajuda. Porém, é mais frequente assistirmos a conflitos entre progenitores que querem a qualquer preço ficar com a criança como forma de vingança em relação ao outro progenitor. 
Uma educação eficaz tem que ter no seu currículo*** uma componente emocional sem a qual as aprendizagens vão criar pessoas que até podem ser profissionalmente competentes mas muito frágeis no relacionamento humano.

Até para a semana, com muita saúde.

________________________________
* Infelizmente, um pouco por todo o mundo... Ficamos sem palavras, o silêncio de uma dor sem limites, perante tamanha violência para com as crianças.
** Ana Carolina B. S. Pereira, Filicídio: alguns contributos para a compreensão do fenómeno.
*** Goleman, D. - Emoções destrutivas e como dominá-las, C. Leitores. (cap. 11, "Formar um bom coração" e cap. 12, "Encorajar a compaixão".