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19/08/25

Florescer


Peggy Lee -  É só isso ? (Is that all there is?)


"Is that all there is?", música interpretada por Peggy Lee, descreve alguns eventos da vida, positivos e negativos: um incêndio presenciado na infância, o encantamento do circo e a experiência sem sucesso de um relacionamento amoroso. Seja qual for a situação, resulta sempre insatisfação e desilusão, algo está  sempre em falta. Que mais tem a vida para oferecer? Na festa e na desgraça, é só isso ? Na alegria e na tristeza, é só isso?
O tema é glosado de diferentes maneiras, como em "Estou além" (António Variações): “Esta insatisfação / Não consigo compreender / Sempre esta sensação / Que estou a perder”. Ou, mesmo quando "o homem do leme" enfrenta o destino com coragem para ultrapassar as dificuldades, "a vida é sempre a perder" (Xutos e Pontapés - "O homem do leme").

A "síndroma Peggy Lee" parece abranger muita gente para quem tudo é insatisfatório. De facto, em tempos de tédio, insatisfação permanente e vitimização imperiosa, não há mais nada para viver? Perante guerras tão miseráveis quanto cínicas não é caso para perguntar: a guerra é só isso? 
Ou mesmo quando em tempos mais pacíficos, a nossa luta interior, não nos deixa sossegados, a vida é só isso?

Os mais novos parece serem mais afectados por esta condição: como refere Pedro  Strecht.
"- Podia explicar o que quer dizer com a descrição da sensação: "estou mal, porque estou bem"? 
- Porque estar bem, para muitos pais e filhos, parece ser sempre insuficiente. Quando nos esquecemos que, em várias ocasiões, "menos é mais", somos facilmente levados a um padrão de constante sensação de falha ou falta porque, mesmo que já se tenha "tudo", parece sempre que "nada" chega. (Entrevista a Vanda Marques, "Pedro Strecht: Nunca existiram tantas crianças e adolescentes a sentirem-se sós", Sábado, 13 de Julho)

Temos alguns momentos, breves ou persistentes, de melancolia, passamos por momentos de tristeza e apatia que podem ser uma reação emocional normal a perdas, decepções ou situações difíceis da vida. A melancolia persistente por longos períodos é como a depressão e possui os mesmos sintomas: a pessoa não se interessa por nada ao seu redor, nenhum acontecimento traz prazer ou alegria e a vida deixa de ter interesse.

Também existe relação com o luto. "Contudo, a melancolia contém algo mais que o luto normal. Na melancolia, a relação com o objeto não é simples; ela é complicada pelo conflito devido a uma ambivalência. Esta ou é constitucional, isto é, um elemento de toda relação amorosa formada por esse ego particular, ou provém precisamente daquelas experiências que envolveram a ameaça da perda do objeto. Por esse motivo, as causas excitantes da melancolia têm uma amplitude muito maior do que as do luto, que é, na maioria das vezes, ocasionado por uma perda real do objeto, por sua morte. Na melancolia, em consequência, travam-se inúmeras lutas isoladas em torno do objeto, nas quais o ódio e o amor se digladiam; um procura separar a libido do objeto, o outro, defender essa posição da libido contra o assédio." ( Freud, Luto e melancolia)

Também, em Psicologia, falamos de alexitimia (palavra de origem grega: a-falta de, sem; lexis-palavra; thymus-emoção ou ânimo), utilizada pela primeira vez por Peter Sifneos, em 1967. A alexitimia é um construto que "designa a falta de palavras para descrever as emoções. Afetivamente conduz a uma grande dificuldade em reconhecer, descrever e discriminar sentimentos e emoções. Cognitivamente, há um estilo de pensamento muito particular, virado para o concreto e para o exterior e relacionalmente, há relações úteis, pragmáticas e superficiais. Existe uma incapacidade em perceber o outro com uma individualidade própria, os seus sentimentos, havendo portanto uma reduzida empatia e compreensão." (S. Pereira, Alexitimia, ITAD)

"Is That All There Is?" coloca a questão fundamental sobre o que é a vida e como podemos responder.
Os paraísos artificiais que invariavelmente levam ao meio do nada ou, definitivamente, a  lado nenhum, podem parecer que é por aí que encontramos resposta para a insatisfação e infelicidade mas, como neste caso, depressa se percebe "que tinha parado de ter qualquer esperança, sonhos ou objectivos. Chamei isso de meu momento Peggy Lee".  Então a droga é só isso?

Assim sendo, "Eu sei o que devem estar dizendo a si mesmos: Se é assim que ela se sente, por que ela simplesmente não acaba com tudo?
- Ah, não, não eu, eu não estou pronta para essa decepção final. Porque eu sei tão bem quanto estou aqui falando com você que quando esse momento final chegar e eu estiver dando meu último suspiro, estarei dizendo a mim mesma:
É só isso, é só isso?
Se é só isso, meus amigos, então continuemos dançando.
Vamos beber  e divertir-nos.
Se é só isso."

Não é só isso. Não pode  ser só isso: viver por viver. Podemos sempre superar as dificuldades, superar o trauma. Podemos, sempre, ser resilientes e prosperar, se quisermos. Podemos fazer o caminho da psicoterapia, o caminho do florescimento,  o caminho da espiritualidade e, se é pessoa de alguma fé, o caminho da ressurreição.

A falta de um propósito para a vida parece fundamentar esta falta de interesse pela vida. logoterapia (Victor Frankl), diz-nos que a vida tem um sentido e, se assim é,  pode se ser o começo da psicoterapia/cura.
M. Seligman criou o modelo de florescimento constituído pelos seguintes elementos: emoção positiva, envolvimento, relações,  significado, realização pessoal (PERMA).
Florescer permite uma cultura de cuidado, do próprio e do outro, fazendo o mundo mais bonito por dentro, e, ao  cuidar da natureza, fazendo o mundo mais bonito por fora. A beleza vem da escolha: podemos escolher entre a "vida vazia" ou "a vida plena". Como diz Epicteto, "Não és o teu corpo nem o teu penteado, mas sim a tua capacidade de escolher bem. Se as tuas escolhas forem belas, então serás belo". (Ryan Holiday e Stephen Hanselman, Estoico todos os dias, p. 110)
"A vida vale a pena ser vivida", mesmo contra "os pensamentos catastróficos automáticos" (Seligman, p. 65) e "Todos podemos dizer sim a mais bem-estar" (p. 257). 
Florescer é, afinal, encontrar o bem-estar na vida, como é definido por Seligman. E isso está a acontecer em muitos países. Nuns mais do que noutros. Felicia Huppert e Timothy So, da Universidade de Cambridge, definiram e avaliaram o florescimento em  23 países da União Europeia (2009). A Dinamarca liderava o ranking com 33% da população florescendo. E Portugal estava em penúltimo lugar com  cerca de 7%. (pp. 41-43 e 254-257) 

No início de Agosto, mês de férias, e, portanto, mês de sair da azáfama quotidiana de procura incessante das riquezas - vaidade - a primeira leitura, na liturgia de domingo, apresenta um texto lindíssimo do Eclesiastes: vaidade das vaidades tudo é vaidade. 
Salomão (Eclesiastes), suposto autor, desiludido e amargurado depois de uma vida de glórias e prazeres, constata a inutilidade de todos os esforços do homem e conclui que tudo na vida é “vaidade” ou “ilusão”.
Então, onde procurar o bem-estar? Se tudo é vaidade, tem de ser noutro lugar para que tudo faça sentido.

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As referências são de M. Seligman, A vida que floresce, estrelapolar/Leya, 2011.

20/06/25

“Mal-estar na civilização”


Ouvimos dizer que o mundo está polarizado. Mais do que isso: o mundo está em guerra e assistimos a atrocidades inimagináveis.
Este século começou mal, com um ataque violento aos Estados Unidos em que foram derrubadas as torres gémeas com cerca de 3000 pessoas mortas (2.977, além dos 19 sequestradores dos aviões). O 11 de Setembro é considerado o ataque com o maior número de mortos da história. Além disso, foi uma tragédia que mudou, em vários aspectos, os rumos do mundo.
Depois veio a pandemia cujos resultados, como estamos agora a constatar, não deixaram tudo bem, antes pelo contrário.
Vivemos, pelas paredes-meias da comunicação social, com a guerra da Ucrânia-Rússia, Israel-Gaza-Irão.

Vivemos “o mesmo mal-estar de que Freud nos falava no início do século XX, no texto O mal-estar na civilização, “em que apresenta uma visão pessimista da relação entre o eu e o outro. É uma visão decorrente de uma leitura que centra a reflexão em torno do conceito de narcisismo; ou seja, tomando como ponto de partida os apelos e desejos narcísicos do eu, o outro aparecerá como um obstáculo. (1) 

O ambiente está, de facto, polarizado e irrespirável. A saúde mental foi afectada de forma particularmente sensível.
Claro que as pessoas são afectadas de forma diferente. Há pessoas que são mais afectados do que outras. Ou seja, em que as vulnerabilidades pessoais são mais relevantes do que as potencialidades.

Deste desequilíbrio surge, então, a doença mental.
"Se definirmos a doença mental como uma perda de controle sobre a mente poucos de nós podem garantir estar livres de algum tipo de mal-estar."
“Quando ficamos doentes perdemos o controle sobre os nossos melhores pensamentos e sentimentos. Uma mente que não está bem não consegue aplicar um filtro à informação que chega à consciência; já não consegue ordenar e sequenciar o seu conteúdo. E a partir daqui, sucede-se uma panóplia de cenários dolorosos:
- A nossa consciência é continuamente invadida por ideias despropositadas, como vozes inclementes que ecoam sem parar...
- Somos incapazes de nos reconciliarmos com quem somos.Todas as coisas más que alguma vez dissemos ou fizemos reverberam e ferem nossa auto-estima...
- Não conseguimos moderar a nossa tristeza. Não conseguimos ultrapassar a ideia de que não fomos realmente amados, que fizemos da nossa vida adulta uma bagunça que desapontamos todas as pessoas que alguma vez tenham tido um pingo de esperança em nós...
- Todos os compartimentos da nossa mente estão escancarados. Os pensamentos mais estranhos, mais extremos, correm descontrolados pela nossa consciência. Começamos a temer que possamos gritar obscenidades em público...
- Nos casos mais graves perdemos o poder para distinguir a realidade exterior do nosso mundo interior...
- Á noite... ficamos indefesos perante as nossas piores preocupações... (2)

Mas a vida é assim. A verdadeira saúde mental, diz-nos Alain de Botton, envolve uma aceitação honesta de que, mesmo nas vidas mais competentes e significativas, haverá sempre algum grau de sofrimento e dificuldades...


Até para a semana.


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(2) Alain de Botton, Uma viagem terapêutica, D. Quixote, p. 16-19.




Rádio Castelo Branco




06/06/25

Activismo e manipulação


A comunicação social vai dando conta de episódios como este: "As autoridades detiveram quatro ativistas por "desobediência" ao tentarem bloquear uma via de acesso ao Aeroporto Humberto Delgado. O protesto tem como lema “travar a crise climática”. Ou como este, mais antigo: "Sítio pré-histórico inglês de Stonehenge pulverizado com tinta por ativistas ambientais"...

“Quando pensamos em ativismo, muitas vezes associamos o termo a demonstrações públicas, construção de barricadas, bem como atividades engraçadas e criativas pensadas para chamar a atenção para uma causa.“
Na maioria das vezes, essas atividades não são projetadas para criar ou propor consenso. Elas são pensadas para convencer ou informar as pessoas para, por exemplo, obter apoio popular para uma causa ou colocar um problema na agenda pública... (1)
O que caracteriza o activismo é essencialmente o protesto público e a influência dos decisores. 
Substancialmente, trata-se de uma forma de manipulação da mente. Os objectivos do activismo são os de quaisquer outras formas de manipulação, servindo-se das repercussões que causa através dos meios de comunicação social.
De facto, todos sabemos do poder de manipulação que os media oferecem à política,  à economia, ao consumo, ao marketing, publicidade, propaganda e acção psicológica...
Claramente, os activistas outra coisa não fazem do que inventar formas de manipular os comuns mortais com a finalidade de levar à tomada de decisão no consumo, na moda, nos comportamentos a adoptar segundo os padrões por eles definidos.

Acontece que num regime democrático existem instituições que dentro da diversidade de propostas políticas escolhidas pelo povo eleitor devem tomar as decisões necessárias ao seu governo.
Ora o activismo não aceita estes procedimentos. Em vez disso, utiliza actividades se possível espectaculares, para manipular as pessoas e levá-las a aderir aquilo que democraticamente não conseguem. 
Rui Ramos diz que “os activistas são os que nunca têm mais que fazer, os que nunca duvidam, os que nunca admitem que a questão pode ter outro lado, os que estão prontos para tudo. Vivem num mundo simples, a preto e branco, imunes a todas as nuances. Mantêm-se, em todos os sentidos da palavra, inocentes: puros e inconscientes. Existem para a acção." (2)

Mas o que faz com que uma pessoa se torne activista? (3)
- A educação parental e a modelagem parece ser um factor importante. Num estudo, verificou-se que os alunos cujos pais lutaram no Vietnam eram muito mais propensos a protestar contra a Guerra do Golfo de 1991 do que aqueles cujos pais não eram veteranos de guerra.
- A personalidade também pode ter importância. Há indivíduos que têm maior probabilidade de sentir uma conexão pessoal se se vêem como parte da comunidade afectada por um problema, como, por exemplo, a identidade com os direitos das mulheres...
- Alguns actos aparentemente podem parecer altruístas , definidos como devoção aos interesses dos outros, mas, na verdade, advêm do desejo de ajudar a si mesmo...

Sabendo disto, está em cada um de nós ter a capacidade crítica para desobedecer aos chefes do activismo e fazer as escolhas da transparência, da coerência, da autenticidade... que possam trazer as respostas necessárias a um mundo melhor.



Até para a semana.



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(3) "What Makes an Activist?", Anne Becker, Psychology Today, 1-7-2003 (última revisão 9-6-2016)





Rádio Castelo Branco





16/05/25

A cultura do cuidado

 

É a prática  que mais falta faz na nossa sociedade. É verdade que o simples facto de se falar no assunto mostra preocupação de mudança. Mas há épocas  em que parece que estamos pior. As guerras vão-se somando e todos os dias nos apercebemos desse mundo sofrido que não vê solução nos políticos, quer democraticamente nossos representantes, quer ditadores, para haver melhoras.

Vivemos num mundo  de direitos, os direitos humanos, os direitos das crianças. Mas de que direitos se trata quando há milhões de crianças que não têm garantido sequer o direito à vida?

Em vez de os líderes deste mundo adoptarem a  cultura do cuidado como um imperativo, o que temos são guerras entre vizinhos, as guerras mais destrutivas, com os meios sofisticadamente selváticos, as mais violentas.

 É por isso que a cultura do cuidado é a base de toda a convivência. Sem ela não teríamos evoluído das cavernas para o respeito dos direitos humanos e da infância.


Dizia o Dr. Armando Leandro: “Não há desenvolvimento ético, cultural, social e económico de qualidade sem qualidade humana e esta é subsidiária em alto grau da qualidade da infância.

O desenvolvimento dessa cultura da infância, ao nível da prevenção e da intervenção reparadora e superadora do perigo, compete a todos.” 

Como estava certo: Pelo tratamento dado aos mais frágeis podemos avaliar a sociedade.

Os maus tratos às crianças são apenas o sintoma de um sociedade que não está bem e que acaba por se magoar a si própria.


Leão XIV, na alocução inicial do seu pontificado, falou da necessidade de uma paz que seja  desarmada e  desarmante, construída através do diálogo e da criação de  pontes.

Um coro universal das vítimas da  insensibilidade, devia todos os dias soar aos ouvidos dos líderes mundiais, reclamando justiça e paz.  Até que entendessem que os resultados das guerras são sempre o sofrimento de todos, dos perdedores mas também dos vencedores.

Uma cultura do cuidado, como o do samaritano que ajudou o estranho que encontrou doente no caminho é o sentimento que faz falta.


A cultura do cuidado é fundamental para vivermos como pessoas como seres humanos que existem  com os outros e em que os narcisismos não são determinantes. 

Uma cultura do cuidado é uma cultura da interdependência onde ninguém é descartável.

“...  quando chegamos a este planeta, somos desde o início da vida rodeados de cuidados diversos que se prolongam no tempo;  chega depois a altura em que devemos cuidar de outras pessoas e passaremos por momentos em que teremos de permitir que outros cuidem de nós, inclusive quando ainda esteja longe o fim da nossa vida. 

Estaremos preparados para assumir a interdependência que exige a nossa própria vulnerabilidade? Teremos consciência de que devemos cuidar de nós próprios, dos nossos entes queridos, do conjunto da sociedade e do mundo em que vivemos? 

Uma sociedade em que o bem-estar individual e o bem-estar coletivo andam de mãos dadas é mais humana, mais forte e muito mais comprometida.” (Isabel Sánchez, Cultura do cuidado )

 

 

Até para a semana.

 



 Rádio Castelo Branco


 




16/03/25

Camilo - 200 anos do nascimento


"Fermentou na mente dos principais lavradores e párocos das freguesias do círculo eleitoral a ideia de levar ao parlamento o morgado da Agra de Freimas."
...
"A autoridade, assim que soube da resolução do morgado da Agra, preveniu o governo de inutilidade da luta. Não obstante, o ministro do Reino redobrou instâncias e promessas, no intuito de vingar a candidatura de um poeta de Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha escrito revistas de espetáculos, e recitava versos dele ao piano, cuja falta ou demasia de sílabas a bulha dos sonoros martelos disfarçava."
...
"Por derradeiro, o governador civil fez saber ao ministério que os povos de Vimioso, Alcanissas e Miranda se haviam levantado com selvagem independência e tinham fugido com a urna para os desfiladeiros das suas serras.
Pelo conseguinte, não pode ser proposto o poeta, que beliscado na sua vaidade assanhou-se contra o governo, escrevendo umas feras objurgatórias, as quais, se tivessem gramática a proporção do fel, o governo havia de pôr as mãos na cabeça e demitir-se.
À excepção de uma lista, o morgado da Agra de Freimas teve-as todas. "
...
"Chegou o tempo de partir para a capital. 
O deputado mandou adiante por almocreve duas cargas de livros, nenhum dos quais  tinha menos de cento e cinquenta anos.
Seguia-se, na conduta dos machos portadores, uma carga de presunto e orelheira, substância quotidiana da alimentação de Calisto Elói. 
Depois outra carga de vinho velho, e na entrecarga uma garrafeira com duas dúzias de garrafas de vinho, que competia antiguidade com a fundação da companhia."
...
"De propósito, saltamos por cima dos pormenores da partida para não descrever o quadro lastimoso do apartamento de Calisto e Teodora.
O apartamento de Teodora e Calisto era título para dois capítulos de lágrimas." *


Onde é que eu já vi isto ?

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* Camilo Castelo Branco, A Queda dum Anjo, Círculo de Leitores (III - O demónio parlamentar descobre o anjo, p. 25-28). A imagem da capa é da edição do Expresso. Pode também ler em A Queda D' Um Anjo.





12/03/25

Ideias que curam 2


 

No meio da grande confusão que vai pelo mundo, e mesmo no nosso pequeno mundo nacional, é preciso que consigamos alguma tranquilidade, sensatez, racionalidade.

É penoso, e talvez para algumas pessoas, perturbador, assistir a tantos desentendimentos, afastamentos, polarizações.

Os dias passam e acrescentam mais ódios e relações cada vez mais clivadas.

Talvez tudo tenha mudado em 11 de Setembro de 2001, quando as torres gémeas foram deitadas abaixo: “O dia que fez abalar o mundo”. (Amaral Dias, Um Psicanalista no Expresso do Ocidente)


Nunca foi fácil para cada pessoa encontrar o equilíbrio na vida e também não o é actualmente. Podemos dizer, no entanto, que é sempre possível “converter qualquer obstáculo num meio para atingir os fins”. Neste caso, atingir o equilíbrio.

Sem dúvida, que tem um papel muito importante tudo o que possamos fazer para nos ajudarmos a nós próprios.

Sei que, também nesta área da auto-ajuda, é necessário ser selectivo porque  há muitos caminhos que podem servir outros propósitos que não sejam os que  interessam.

 

Já aqui tenho escrito e falado (RACAB) em vários procedimentos  terapêuticos que podemos usar na gestão do equilíbrio que procuramos para a nossa vida: a terapia da natureza, a hortiterapia, a biblioterapia, a filosofia, a leitura e prática do estoicismo, as práticas da meditação que vão da terapia mindfulness até à prática da oração...

Por estes dias de incerteza, leio Séneca, Sobre a brevidade da vida, que pode ser um bom começo para fundamentar  esta perspectiva....

Tudo o que está à nossa volta nos preocupa. Vivemos preocupados, ou seja, há todas as condições, políticas, sociais e familiares para que assim seja...

“Mas (diz Séneca) há quem viva preocupado mesmo quando em repouso:  Em casas de campo, no leito, no meio da solidão. Mesmo quando totalmente sozinhos, são a pior companhia que podem ter. Não vivem descansados, mas com preocupações persistentes.”(p. 22)

Provavelmente, estamos nesta categoria e se calhar temos justificadas razões para isso: somos daqueles que trabalham ate à exaustão, até ficarmos doentes (burnout), workaholics inveterados, regressamos cansados de férias,  ficamos cansados de ver tv ou das redes sociais...

 Outra das minhas leituras é Estoico todos os dias, de Ryan Holiday e Stephen Hanselman, que propõe um pensamento para cada dia do ano, principalmente a partir dos textos de Séneca, Epicteto, Marco Aurélio. Uma proposta de leitura para cada dia do ano, mas mais do que isso de meditação.

A leitura para o dia 11 de Março parte de uma frase de Epicteto: “O homem sem impedimentos, que tem à mão as coisas como quer, é livre. Mas aquele que possa ser impedido, coagido ou empurrado para fazer qualquer coisa contra a sua vontade, é um escravo.”(p.103)

As pessoas perdem a liberdade em troca do que supõem ser o êxito, o poder, a riqueza e a fama, são “prisioneiras nas cadeias que elas próprias construíram”.

Se pensarmos bem, há 50 anos, aconteceu o 11 de Março de 1975, com todos os desmandos e  violência que se seguiram e que só viriam a terminar com o 25 de Novembro desse ano.

Não podemos dizer que a crise actual é pior.

 


Até para a semana.




Rádio Castelo Branco










28/02/25

Verdade


Vivemos num mundo onde mentiras, propaganda, manipulação... tomaram conta da nossa vida.
Há mentiras que destroem pessoas e há mentiras que destroem povos. Ou que são a base para se travarem razões que levam à guerra.
A propaganda, que é a arte de vender mentiras, esforça-se por formar a opinião das pessoas e somos enganados pelas imagens censuradas e pelas palavras distorcidas e fora de contexto.
Vivemos na era da pós-verdade em que as notícias apelam às emoções e às crenças pessoais, em detrimento de factos apurados ou da verdade objectiva.
Vivemos no tempo do cancelamento e da censura de quem não concorda com o politicamente correcto ou com a ideia dominante ou a verdade oficial. *

Jordan Peterson - 12 Regras para a Vida – um antídoto para o caos, na Regra 8 - "Diga a verdade ou pelo menos não minta" - diz-nos:
“Pode usar as palavras para manipular o mundo de forma a que receba aquilo que quer. Isso é o que significa “agir politicamente”. É a especialidade dos publicitários sem escrúpulos, dos vendedores, dos anunciantes, dos burlões, dos utopistas encantados com slogans e dos psicopatas. É o tipo de discurso que as pessoas escolhem quando tentam influenciar e manipular os outros.” 
“Alguém que vive uma vida de mentiras tenta manipular a realidade através da percepção, do pensamento e da acção, de modo a que apenas o resultado desejado, e pré-definido, possa existir” (p. 270)
“Quando as mentiras crescem o suficiente, o mundo inteiro estraga-se... Mentiras corrompem o mundo. Pior, essa é a sua intenção” (p. 292)

Segundo Peterson, o processo é o seguinte: Primeiro uma pequena mentira... depois, várias pequenas mentiras para sustentar a inicial. Em seguida um pensamento distorcido... Então, de uma forma terrível, dá-se a transformação das mentiras, através de uma prática automatizada, especializada, estrutural e neurológica, no conjunto de crenças e ações inconscientes.
Depois, vem arrogância e o sentimento de superioridade ...
E, finalmente, um inferno vem depois quando as mentiras destruíram a relação entre o indivíduo, ou o Estado, e a própria realidade. As coisas desmoronam. A vida degenera. Tudo se torna frustração e desilusão. A esperança desvanece. O indivíduo enganador tenta desesperadamente o sacrifício, como Caim, mas não consegue agradar a Deus. Então o drama entra no seu ato final.
Ressentimento e vingança é o que se segue. (p. 293-294)

Fez três anos de guerra, mentiras e ódio sobre a Ucrânia ou seja de manipulação para justificar que em 24 de Fevereiro houve um país que invadiu outro e em que foram, em grande parte, arrasadas as estruturas físicas mas também a vida das pessoas. Esta invasão é "desculpada" pelas crenças territoriais, ideológicas (desnazificação); em vez de guerra, "operação militar especial", em vez de ditador, "líder"...
J. Peterson refere: “É nossa responsabilidade ver o que está diante dos olhos, com coragem e aprender com o que vemos mesmo que seja algo horrível - mesmo que esse horror prejudique a nossa consciência e nos cegue parcialmente.”

Ao invés de guerras, mentiras e ódio... “A verdade é luz na escuridão. Veja a verdade. Diga a verdade. Ou, pelo menos, não minta.” (p.295)


Até para a semana.

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* Nunca houve tanta informação como actualmente o que significa que também nunca houve tanta falta de verdade... Pouco consola que haja programas de verificação de factos (fackt- cheking) para repor a verdade porque o problema é de quem controla esses programas, eles próprios podem mentir (Quem polígrafo o polígrafo; Quem poligrafa o polígrafo-2). Não deixa de ser curioso que a rede social de D. Trump se chame "Truth", tal como um jornal famoso se  chame "Пра́вда".
Tudo, mesmo assim, é preferível a um "MInistério da Verdade" (1984, G. Orwell). Ao invés, os esforços devem incidir no desenvolvimento do sentido crítico que se faz com uma vida intelectual amadurecida, pela curiosidade e pela educação, toda a educação, formal, académica mas também informal e familiar, ou seja pela cultura.

P.S. (6-3-2025) A realidade ultrapassa a ficção e o que escrevi. Estava longe de imaginar  que, da Sala Oval, assistiríamos, em directo, ao vivo e de forma transparente, à tentativa de destruição pessoal e de um país. Falou-se de “cilada”, “tristeza”, “vergonha”, “traição”, “confronto”, “humilhação”... ou “estratégia” negocial. O que quiserem. Que  os fins nunca justificam os meios.


 


Rádio Castelo Branco





12/02/25

A cultura portuguesa - Os melhores dos melhores


O processo de desenvolvimento humano, independentemente da nossa vontade, depende também de determinantes culturais e cada um de nós é o resultado do ambiente cultural onde se processou a sua socialização.
Numa comunidade, o processo de socialização, ou de aprendizagem das normas socio-culturais, necessita de adequada socialização dos seus membros, que tenha como resultado a integração da maior parte deles na sociedade. Ou, caso contrário,  haverá o desvio e a anomia.
Trata-se de um processo circular e dinâmico no qual a cultura que recebemos através dos agentes sociais como a família, escola, igreja, empresa, grupo de pertença, etc. levam a criar em cada um de nós motivações, forças e atitudes, autoestima e resiliência, sentimento de segurança ou de abandono, que farão parte da personalidade e que por sua vez vão constituir a base em que se fará a futura socialização dos jovens.

Continuo a ter uma percepção muito positiva do mandato do Presidente Marcelo, contra a opinião generalizada do contrário. Nesse sentido, concordo que: "Nós somos bons, muito bons. Somos os melhores dos melhores"
O papel que cabe a um Presidente sobre a  autoestima e a (re)motivação dos cidadãos é inestimável para o bem-estar de cada um e para a cultura da comunidade. 
Somos os melhores por aquilo que fazemos, pelos resultados que obtemos, e também pela capacidade crítica dos defeitos e do que, podendo, não fazemos. 

 

Crítica feita sobretudo de humor. Rir das nossas virtudes e defeitos é um bom princípio para sabermos situar-nos no mundo em que vivemos, e não nos tornarmos insuportáveis para os que nos estão próximos...

Ser melhor significa também que se pode ser crítico com total liberdade, sem medo de ser incomodado pelos censores estatais ou informais ou pelos agentes do cancelamento...

Algumas das nossas “elites” não têm esta capacidade. Como, p.ex.,  o despautério de uma esquerda globalista que diz os maiores disparates, sem se rir, da cultura portuguesa.


Felizmente, temos outras vanguardas em que só os melhores têm esta capacidade crítica. De Gil Vicente a Eça de Queirós, de Eduardo Lourenço a Miguel Esteves Cardoso. 

Um Alípio Abranhos do séc. XX pode passar pela Câmara Municipal, Governo ou Parlamento. Temos vindo a divertir-nos com episódios dos passantes por esses sítios de poder sem qualquer noção do sentido de estado ou do ridículo... 

 

As “Aventuras” de Miguel Esteves Cardoso – (1ª parte - As minhas aventuras na República Portuguesa", Independente Demente) mostram como os portugueses têm humor suficiente para se verem ao espelho e serem capazes de sorrir de si próprios e em especial dos políticos que os governam. 

Por exemplo, a “Aventura do sofrer” (p. 42): “Em Portugal  sofre-se muito. Eu sofri muito. Tu já sofreste muito. Só  Deus sabe o que ele já sofreu. De  resto, sofre-se muito neste país. O  próprio país sofre. Sofre só por si com ponto final. E sofre coisas exteriores a si. Sofre  de dúvidas. Sofre quedas. De  escadotes. De  cabelos. Sofre alterações. Sofre cataclismo. Sofre  de sucessivas. Sofre  de chofre. 

Esta afirmação sofre de contra-argumentação.”...

 

 

Até para a semana.

 

 

Rádio Castelo Branco



 



08/02/25

A cultura portuguesa


Há uma frase de Chesterton que diz: "Chegará o dia em que temos que provar ao mundo que a grama é verde".  Creio que ultrapassámos esse dia há muito: Há quem não saiba o que é uma mulher. E quem não queira saber que há dois sexos
Há também quem ache que a cultura portuguesa não interessa. (1)
Em relação à cultura, fiquei sem saber se se trata de uma questão honesta sobre a complexidade do que é a cultura, que reflecte o que significa a cultura nos dias de hoje, se é uma dúvida sobre a cultura portuguesa  ou se é, apenas, mais um absurdo do wokismo, mais uma forma de negacionismo da cultura portuguesa e, no fundo, da cultura. 
Se se tratar desta última possibilidade, ficamos a entender melhor o que se tem andado a (des)conversar sobre os brasões do Jardim da Praça do Império, sobre o Padrão dos descobrimentos, sobre Camões, ou o P. António Vieira...
Se, ao contrário, se pretende compreender e questionar o que é a cultura, temos aqui uma oportunidade para debater o tratamento que, nos últimos tempos, temos dado à cultura.

Para Mario Vargas Llosa (A civilização do espetáculo)  “Ao longo da história a noção de cultura teve diferentes significados e matizes... Mas apesar dessas variantes e até à nossa época, cultura sempre significou um conjunto de factores e disciplinas que, segundo amplo consenso social, a constituíam e ela implicava: a reivindicação de um património de ideias, valores e obras de arte, de conhecimentos históricos, religiosos, filosóficos e científicos em constante evolução, o fomento da exploração de novas formas artísticas e literárias e da investigação em todos os campos do saber.” (p. 61) (2)

O antropólogo Jorge Dias, em O essencial sobre os elementos fundamentais da cultura portuguesa, (Imprensa Nacional-Casa da Moeda), explicou que as várias maneiras de ver o português, mais cultas ou mais populares, são o exemplo da cultura do povo português. (3)
Jorge Dias chama-lhe “as constantes culturais deste povo já velho de tantos séculos.... ou a sua personalidade de base". Assim:
- O Português é um misto de sonhador e de homem de acção, ou, melhor, é um sonhador activo...
- Há no Português uma enorme capacidade de adaptação a todas as coisas, ideias e seres sem que isso implique perda de carácter...
- A saudade do português é um estranho sentimento de ansiedade...
- A saudade toma uma forma especial, em que o espírito se alimenta morbidamente das glórias passadas e cai no fatalismo do tipo oriental, que tem como expressão magnífica o fado...
- Uma das características mais importantes da saudade é precisamente essa fixidez da imaginação, que, por intensidade se pode tornar em ideia motora e conduzir à acção. É esta obstinação que encontramos na arte, na musica, nas canções corais alentejanas e minhotas... 

- O Português é sobretudo profundamente humano, sensível, amoroso e bondoso, sem ser fraco. Não gosta de fazer sofrer e evita conflitos, mas, ferido no seu orgulho pode ser violento e cruel.

- A capacidade de adaptação é uma das constantes de alguma portuguesa. “o português adapta-se a climas, profissões, a culturas, idiomas e a gente de maneira verdadeiramente excecional”... 

- “Outra constante da cultura portuguesa é o profundo sentimento humano, que assenta no temperamento afectivo, amoroso e bondoso. Para  o português o coração é a medida de todas as coisas.”


Também Eduardo Lourenço escreve sobre a saudade em O labirinto da saudade - Psicanálise mítica do destino Português (Publicações D. Quixote) 
Somos irrealistas, vivemos de sonhos? “Somos um povo de pobres com mentalidade de ricos” ? 
Há muito para repensar. Mas também era tempo de conhecer melhor a nossa terra, a nossa gente, a nossa cultura e também de apreciar a arquitectura, a literatura, a música, a arte... e de ter orgulho da cultura portuguesa. 


Até para a semana.



Rádio Castelo Branco



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(1) Reacção de uma eurodeputada, Ana Catarina Mendes (do PS), à posição do líder do seu partido, Pedro Nuno Santos, que, num momento de lucidez, referiu que deve haver  adaptação dos imigrantes à cultura do país que os acolhe (aculturação). 


(2) Para Vargas Llosa, a cultura estabeleceu sempre categorias sociais entre aqueles que a cultivavam e aqueles que a desprezavam ou ignoravam ou dela eram excluídas por razões sociais e económicas. Em  todas as épocas havia pessoas cultas e incultas e entre os dois extremos pessoas mais ou menos cultas ou pessoas mais ou menos incultas. Mas no nosso tempo tudo isso mudou, toda a gente é culta, e há uma cultura para todos os disparates...

E isto já é outra coisa!

 

(3) Alguns trabalhos, mais eruditos ou mais populares, sobre a cultura portuguesa que têm  passado nos media, como, por exemplo: "O Tempo e a Alma", com José Hermano Saraiva; "Visita Guiada", com Paula Moura Pinheiro; "Primeira Pessoa", com Fátima Campos Ferreira; "Terra Nossa", com César Mourão, "A nossa cultura" - Observador; "Portugal fenomenal", com Tiago Góes Ferreira... mostram algumas das várias vertentes de abordagem da cultura portuguesa.

 




22/01/25

Percepção e Realidade


Daqui



A percepção é uma “conduta psicológica complexa através da qual um individuo organiza as suas sensações e toma conhecimento do Real.” (Dicionário Temático Larousse – Psicologia, Círculo de Leitores, p. 198)

Podemos referir alguns aspectos fundamentais da percepção:

- A percepção é a única forma que nos permite conhecer a realidade. Sem percepção viajávamos sem referências pelo nosso mundo exterior e interior.

- É necessário haver integração sensorial (Teoria da integração sensorial de Jean Ayres) que é a capacidade do sistema nervoso central para receber, processar e interpretar informações sensoriais provenientes dos diferentes sentidos: visão, audição, tacto, olfato, paladar, propriocepção (perceção do corpo no espaço) e o sistema vestibular (equilíbrio e movimento)... para criar uma imagem coerente e organizada do mundo e do próprio.

- A percepção é subjectiva. "Estes são os meus olhos, isto é o que eu vejo e é assim que eu penso." A minha percepção não é a de toda a gente. Cada pessoa tem a sua percepção. A percepção da realidade não é uma reprodução exacta do mundo exterior, mas uma construção subjectiva dessa realidade baseada nas nossas experiências e interpretações individuais.

- A percepção da realidade é influenciada por diversos factores, como experiências passadas, crenças, valores, cultura e emoções.
Tendo em conta estas características, concluímos que a percepção pode enganar-nos e levar-nos a cometer erros de análise e de avaliação. E, além disso, estes erros podem ser perigosos para o próprio e para os outros.
De facto, tudo isto acontece porque “o problema dos humanos é que eles vêem o universo mais com as suas ideias do que com os olhos” (Boris Cyrulnik), ou seja, entre os humanos, ver a realidade significa lê-la de uma determinada maneira. Essa leitura passa por vários mecanismos complexos de processamento das informações... (Jean-François Dortier, "La perception, une lecture du monde", Sciences Humaines)

- Tendo em conta estas características da percepção, podemos concluir: A percepção que eu tenho da realidade pode enganar-me e levar-me a ver a realidade de forma errónea. 

Toda a polémica acerca da insegurança e do medo relacionados com o que se passa em determinadas zonas duma cidade, como o Martim Moniz, deve levar em conta o nosso condicionamento e subjectividade. 
Mesmo os que consideram que lêem melhor a realidade porque sabem ler melhor a sociedade e as estatísticas, como os comentadores dos media, seguem as suas percepções que dependem das preferências politico-partidárias com que simpatizam ou têm afinidade, as suas crenças e visão do mundo...
A realidade não muda pelo facto de haver mais ou menos pessoas que pensam que estão do lado das boas percepções da realidade. 

Não há uma percepção mas percepções. A leitura da realidade está sujeita a erros perceptivos por parte de toda a gente: por aqueles que defendem a polícia e por aqueles que são contra o “modus operandi” da polícia, ou, simplesmente, contra a polícia e contra o poder incumbente. 
E este enviesamento perceptivo é o maior erro de quem se recusa a ver, ouvir e achar que não se passa nada. 
Não era Fanhais que cantava os versos de Sophia “Vemos, ouvimos e lemos não podemos ignorar” ? 


Até para a semana.



Rádio Castelo Branco




07/12/24

Natal – tempo de afectos


Vivemos mais um tempo de Natal, tempo mágico em que a luz, a árvore, a música e tantos outros símbolos, que estão um pouco por todo o lado, nos apelam para  a renovação e transformação da nossa vida  e nos reconfortam com expectativas de emoções e sentimentos mais conformes às necessidades de equilíbrio e homeostasia na nossa vida.


Os nossos sentimentos estão associados às vivências sociais e à cultura deste tempo: Paz, união, amor, saúde, perdão, gratidão, felicidade, prosperidade, solidariedade e fé, são algumas palavras que usamos para os expressar.

A nossa vida seria impensável sem estes sentimentos. Como refere António Damásio: sem sentimentos “seria impossível classificar quaisquer imagens como belas ou feias, agradáveis ou dolorosas, de bom gosto ou vulgares, espirituais ou terrenas.” Diz ainda A. Damásio que “são os sentimentos que nos guiam, que servem de bússola ao nosso comportamento.” (Entrevista de J-F Marmion a A. Damásio "Les raciones biologiques de la Culture", Le cercle psi, p.67)

A nossa vida tem na base um funcionamento homeostático de cujo mecanismo fazem parte os sentimentos que nos ajudam a compreender a nossa vida social e cultural.

Se a nossa vida for comparada a uma árvore temos na parte inferior a regulação metabólica, os reflexos básicos,  as respostas imunitárias.

Nos ramos maiores, os comportamentos de dor e prazer  e, nos ramos mais finos, as pulsões, motivações e emoções e, finalmente, os sentimentos.

Para A. Damásio, “a homeostasia (esse conceito da biologia definido como um processo de regulação pelo qual um organismo consegue a constância do seu equilíbrio) aplica-se à expressão do nosso sentimento pessoal, e estende-se facilmente à família e à tribo mais próxima. O problema é quando esse estado tem de se alargar a milhares de pessoas.  Aí conseguir o equilíbrio é muito mais difícil. Isso explica por exemplo o recrudescimento dos extremismos na Europa. A única solução, insisto, é educar. Para que o nosso sentimento seja o de aceitar o outro.” (Teresa Campos, Uma aula com António Damásio, Visão, 31.10.2017)


Apenas um pequeno grupo dos sentimentos funcionam negativamente. É, por isso,  chocante  que vivências negativas como é o caso da guerra, da violência, da dor e do sofrimento, em especial daquele que atinge os mais desprotegidos, como as crianças, estejam tão presentes na nossa historia recente. 

Os desequilíbrios não têm fim, e há quem continue  apostado num caminho desequilibrado, em que os sentimentos negativos se vão prolongar nefastamente por  várias gerações, dificultando, não só a nível físico, a reparação das infraestruturas destruídas mas, mais profundamente, a reparação das estruturas mentais como os sentimentos de cada vítima da guerra...


O problema é, então, como ultrapassar os sentimentos negativos: a raiva, a vingança, a desconfiança: quando volta a acontecer, quando surge outro ditador, quando teremos, finalmente, Paz.

Dito de outra maneira, como e quando será reposta a homeostasia, essa capacidade de a vida se manter  e  se desenvolver porque o nosso fito é continuar vivos e pensar no futuro (TC, idem)

Os sentimentos que nos vêm da luz, do brilho, da presença, dos abraços deste tempo são o desejo de felicidade para o Natal e de prosperidade para o próximo Ano!




Até para a semana.




Rádio Castelo Branco