29/04/22

Tudo menos "cisne negro"

Miguel Monjardino, "Guerra e Paz", Expresso, 30 de Janeiro de 2016. Casualmente, o jornal não teve o destino habitual e o assunto reactivou-me a memória e a atenção: Deixa cá ver...
Tinha acontecido a Ucrânia - Crimeia e a seguir a Síria. 
Infelizmente está aqui tudo e é extraordinário como MM fez a previsão certa para os acontecimentos de 24 de Fevereiro de 2022. Não queria acreditar. Todos nos perguntamos como foi possível chegar aqui. Afinal os sinais já estavam lá todos, apenas faltava saber a data.








27/04/22

O direito à liberdade de viver sem medo

Norman Rockwell, Freedom from Fear (1943), Série Four Freedoms.

 

Todos conhecemos o episódio da “invasão pelos marcianos” de  uma cidade dos Estados Unidos, difundido pela CBS, em 1938.(1) Foi ouvido por cerca de 6 milhões de pessoas das quais metade o sintonizou quando já havia começado, perdendo a informação de que se tratava da radionovela semanal. 

O que se passou a seguir é espantoso: Mais de um mlhão de pessoas acreditou ser um facto real. Dessas, meio milhão teve certeza de que o perigo era iminente, entrando em pânico, sobrecarregando linhas telefónicas, com aglomerações nas ruas e congestionamentos causados por ouvintes apavorados tentando fugir do perigo.

 

Podemos dizer, que há vários passos para a manipulação das pessoas:

- Espera prolongada e tensa.

- Aumento progressivo da excitação.

- Arrastamento do indivíduo pela multidão.

- Perda de distanciamento crítico.

- Despersonalização na "embriaguez " das multidões.

Vejamos. Ao mesmo tempo que aumentava a tensão com as manobras militares mostradas nos media, crescia a incerteza da invasão e ocupação da Ucrânia. Mesmo após a invasão, em 24 de Fevereiro, ela foi negada, e continua a não se poder falar no país invasor de invasão.

Para haver manipulação não é necessário tratar-se de acontecimentos concretos mas de tudo quanto possa ser objecto de manipulações: sentimentos inflamados, situações sensacionais, necessidades fundamentais (A manipulação dos espíritos, pag. 40)

A tensão vai-se construindo pela repetição do que dizem estar em jogo – a segurança. Para isso, o maior país do mundo, necessita, imagine-se, dominar outros povos e alargar a sua influência, desde a Síria, Geórgia, Moldávia, Ucrânia...(2)

 

“Os sentimentos de angústia não são menos perigosos do que a agressividade. Quem esteja dominado pela angústia, só por acaso reagirá ajuizadamente. A sua reacção “normal” é a fuga. 

A fuga inspirada pelo medo tem vários rostos e não se vê imediatamente o que atrás deles se esconde. É conhecida a fuga para o mutismo, a partida para férias, o refúgio na superstição, na mentira, na doença, no extremismo.” (Idem, pag. 40)

 

O medo faz parte e  condiciona a nossa vida e é uma forma de manipulação psicológica...

É por isso que os manipuladores se dedicam à fabricação do medo. Dos “pequenos medos”. Lembram-se do açambarcamento de papel higiénico no início da pandemia ou das filas de automóveis nas estações de serviço sempre que há um aumento do preço do petróleo... 

E dos grandes medos. Somos manipulados pela força bruta da guerra, a força dissimulada da propaganda, a força de destruição das novas armas, a força megalómana dos teóricos dos impérios... (3)

Somos manipulados pelas ameaças veladas ou expressas, como o medo do alastramento da guerra a outros países, o medo expresso ou insinuado da possibilidade da terceira guerra mundial, a ameaça da utilização de armas nucleares...  são formas de manipular as pessoas para as condicionar na sua vida, na sua vontade, no seu pensamento e nas suas decisões...

 

Por isso, o direito à "Liberdade de viver sem medo", referido por Roosevelt, é fundamental  para se viver. 

 

Até para a semana.

 

 

 

____________________

(1) Tratava-se da adaptação d ‘A Guerra dos Mundos, um romance de ficção científica de Herbert George Wells, adaptado por Orson Welles.


(2) Não deixa de ser interessante que uma deputada do bloco de esquerda venha justificar:“O que está em causa para a Rússia é a segurança do seu espaço e da sua fronteira” (linhas vermelhas - programas) . 

Este caminho pode tornar-se desastroso quando se entende a segurança do espaço como "espaço vital".


(3) E, nos últimos anos, o medo das consequências das alterações climáticas tem sido utilizado como pensamento único e como forma de manipular as pessoas pelo medo, sujeito a censura nas redes sociais. (“Apocalipse nunca: por que o alarmismo ambiental nos prejudica a todos”,  Michael Shellenberger).

 










21/04/22

A questão da liderança


Podemos dizer que a vida de um povo depende dele próprio que ao escolher ou tolerar determinado líder aceita, passivamente, não se manifestando ou, activamente, apoiando ou opondo-se, a compreensão que faz do seu passado e a vida que quer viver agora e no futuro.
Sabemos muito sobre liderança mas não queremos compreender como ela pode ser determinante para a mudança de comportamentos de toda a sociedade. Ora bem, a liderança começa em cada um de nós pela forma como sabe e é capaz de gerir as suas emoções.
Como diz Augusto Cury, "só é eficiente quem aprende a ser líder de si próprio, ainda que intuitivamente: tropeçando, traumatizando-se, levantando-se, interiorizando-se, reciclando-se." (Gestão da emoção, pag. 7)
Ou seja “ sem saber gerir a emoção, nenhuma das restantes competências tem sustentação. Sem liderar o mais rebelde, fascinante e importante dos mundos, a emoção, não é possível dar musculatura ao pensamento estratégico, à arte de negociar, à habilidade de se reinventar e de ser proativo.” (Pag. 8)
A liderança política é, por isso, a capacidade que um indivíduo tem de se auto-dirigir e de dirigir os processos políticos, levando os outros a seguirem essa forma de actuação ou modelagem.

Um líder político deve ter conhecimento do contexto histórico em que vive, da sua comunidade, do seu país, e deve ser capaz de se adaptar e ou de mudar conforme o contexto, colaborando com os cidadãos na melhoria das condições de vida do povo a quem serve e de procurar as melhores relações com os outros indivíduos e povos.

Os líderes, políticos ou não, podem usar vários estilos. Kurt Lewin definiu os três tipos de liderança que normalmente existem nos grupos e nas organizações: A liderança liberal ou laissez-faire, a liderança democrática ou participativa e a liderança autoritária.
O líder liberal só aparece quando solicitado a isso e normalmente as decisões são tomadas pelos indivíduos ou pelo grupo. É mais um facilitador de processos, coordenador do grupo e da informação. Mas isso também pode significar aumento da responsabilidade e iniciativa individual.
Na liderança democrática ou participativa, os membros de um grupo ou organização assumem a responsabilidade da tomada de decisão. Dessa forma, cada um oferece o melhor que pode colocar à disposição do grupo ou da organização.
Ao contrário da liderança democrática e da liderança liberal, a liderança autocrática assume um controle absoluto sobre a maioria dos processos vividos pelas pessoas. Este estilo de liderança é autoritário e não conta com a participação de quem está fora do governo.

É por isso que, num regime democrático, ou mesmo num regime autoritário quando a oposição é tolerada, a liderança da oposição assume um papel fundamental. 
Essa liderança baseia-se na resistência ao poder estabelecido. É seu papel questionar as medidas tomadas, avaliar os erros e denunciá-los. Ao deixar de ser oposição, essa liderança perde o seu sentido de ser, devendo assumir outra forma de estar na política.
Como vimos, as lideranças e os estilos de liderança são diversos e fazem toda a diferença na história dos povos como se vê no tempo em que vivemos...


Até para a semana.



____________________



18/04/22

Propaganda - fazer o mal e a caramunha



Qualquer regime político, ditadura ou democracia, usa a persuasão e propaganda no âmbito da luta política com vista a alcançar determinados objectivos.

Para Andrea Devoto, persuasão e propaganda “são duas técnicas de mobilização ideológica dos indivíduos e das massas, típicas do mundo moderno muito embora no passado se possa citar exemplos da sua utilização.” (A tirania psicológica, pag. 293)

Hoje em dia, é muito vasto o conjunto de meios à disposição dos políticos no campo da persuasão e propaganda... Sou do tempo d’ “A verdade é só uma, rádio Moscovo não fala verdade!”  ou de quando ouvíamos a BBC para sabermos as últimas notícias, mas em que a propaganda estava incluída quer num caso quer no outro... Desde então os media tiveram uma evolução sem precedentes o que permitiu mais informação mas também mais propaganda e manipulação. Hoje, o acesso à realidade é ainda mais difícil como o provam as fake news, as deepfake,  os cancelamentos (woke), a necessidade de “polígrafos”... em que tudo aquilo que não seja “politicamente correcto” é censurado e as pessoas são destituídas dos seus cargos e  prejudicadas nas suas carreiras... Ou seja, os media, controlados pelo estado ou nãoinfluenciam ou até controlam o nosso pensamento e a  nossa vida. *


No entanto, existe uma grande diferença entre regimes totalitários e os variados regimes democráticos. Esta diferença nota-se principalmente na maneira como se ocupam dos simples cidadãos, para os regimes totalitários o individuo não tem qualquer relevo, ao contrário do que acontece nos regimes democráticos. (A. Devoto, referindo Antonio Miotto, pag. 294.) Para os regimes totalitários o indivíduo desaparece para se sujeitar e uniformizar ao grupo conforme o grupo e o estado desejam.


A propaganda tem efeito nos processos conscientes e inconscientes do indivíduo. Usa técnicas psicológicas de condicionamento do comportamento (Pavlov, Whatson, Skinner) explora as técnicas de comunicação, estuda as motivações, utiliza a percepção subliminar, etc..

Tudo isto funciona no contexto em que o condicionamento social transforma o ser humano alterando a sua personalidade.** É por isso tão importante o apelo à juventude e à participação nas organizações juvenis... O processo de socialização, a aprendizagem do indivíduo a viver em sociedade e a adaptação às normas do grupo e da comunidade em que vive, de algum modo condiciona socialmente o indivíduo. 

Assim condicionados, podemos perguntar até que ponto o ser humano é ou não livre nas suas atitudes e nos seus comportamentos, nas suas escolhas e decisões... 


Então, podemos concluir que estamos sujeitos à propaganda de um ou de outro lado do conflito. Como sabemos até que ponto estamos ou nao a ser manipulados pela acção psicológica? Não sabemos.

Porém, sabemos que a propaganda para ser eficaz não deve ser exagerada. Putin faz o mal e a caramunha: faz o que está à vista de todos, invade a Ucrânia,  e depois queixa-se de ser vítima do regime ucraniano. Queixa-se de que não tinha outro remédio senão invadir a Ucrânia e, como tem “nobres” sentimentos, vai salvar os ucranianos desse demónio (o regime ucraniano). Como no modelo de Karpman é vítima-agressor-salvador. E este é um agressor particularmente violento e arrasador que já se adivinhava pelo comportamento anterior noutros “salvamentos”.

 


Até para a semana com muita paz.

 


______________________

** Svetlana Aleksievitch, O fim do homem soviético - Um tempo de desencanto, 2012 (trad. portuguesa de 2015) 




 

 


11/04/22

O Triunfo do Amor




De repente, transportado para o séc. XVIII, final do Barroco. O concerto de Páscoa, que passou por Castelo Branco, um privilégio ao fim da tarde deste domingo, com Pierre Montan Berton e Francisco António de Almeida.
Na falta da Missa em Fá maior, fica aqui outra obra de Francisco António de Almeida.



Francisco António De Almeida: Il Trionfo d’Amore (The Triumph of Love / Triunfo do Amor) | 1729








05/04/22

As crianças da Ucrânia

Menino ucraniano ferido pergunta pelo pai


As crianças da Ucrânia já não vão ao jardim de infância
nem encontram a sua escola, desaparecida sob as bombas
e no lugar do parque infantil há apenas devastação.
A alegria arrasada, as brincadeiras destroçadas.
As crianças da Ucrânia, à tarde, já não regressam a casa
pela mão do pai ou ao colo da mãe.

As crianças da Ucrânia já nem sequer precisam da escola
porque estão no hospital e vivem no bunker
nem dos pais porque, sozinhas, vagueiam pela rua,
ou fogem com a mãe, levadas por estranhos
para lugares desconhecidos.

Dima é uma criança da Ucrânia, menino de 8 anos,
que, num hospital de Zaporizhzhia, chora de dor.
Dima não sabe que seu pai,
como ele, também foi ferido, em Mariupol.
Dima não sabe dos cinco mil civis mortos em Mariupol.
Nem das duzentas e dez crianças mortas em Mariupol.
Dima chora e implora: "Onde está o meu pai ?"
"Quando chega o meu pai?"
“Ele vai chegar, como ele disse à mãe”, diz a enfermeira.
Uma criança num hospital de Mariupol chama pelo pai.
O desespero em cada hora, minuto, segundo,
e o pai não chega, a protecção não chega...
no rosto de Dima as lágrimas porque o pai não chega.

Dima grita, como outro Filho, há dois mil anos:
"Pai, por que me abandonaste ?"
Eu sei que Jesus gritou: "meu Deus,
meu Deus por que me abandonaste?"
Talvez Deus, o Pai, escute Dima.

Dima não sabe por que o pai não vem
porque Dima também não sabe 
que 
em vinte e quatro de Fevereiro de dois mil e vinte e dois,
as crianças da Ucrânia encontraram o seu Herodes.

Há pessoas no mundo que não gostam de crianças
Nem sequer parecem pessoas.
Que mal fazem as crianças que apenas querem ir à escola
e brincar com os amigos?
Que mal têm as crianças quando esperam pelos seus pais?

Na Ucrânia, a alegria das crianças
deu lugar ao som das bombas,
às noites e aos dias acordados, há tantos dias.
E, nos próximos anos, virão outros dias
sem conseguir dormir.
Aquilo que os olhos viram e não deviam ter visto
aquilo que os ouvidos ouviram e não deviam ter ouvido
vai ficar delas para sempre.
As marcas que lhes fizeram vão ser delas para sempre.
As falhas, os traumas vão ficar abertos por muitos anos.
Nesse lugar onde devia estar o colo da mãe,
a segurança do pai, o carinho dos avós...
vão encontrar apenas o vazio, a injustiça, a miséria,
de um tempo que devia ser de bondade, de felicidade, 
duma infância que não tiveram
porque a roubaram os sem vergonha.

Aprenderam, no sofrimento, que há canalhas
que fazem sofrer os outros 
Que o mundo não é uma escola
onde ensinam a respeitar os outros:
as crianças, os mais velhos, os mais frágeis.
Onde ensinam a pedir desculpa 
pelo mal que fazemos,
pelos erros que cometemos.
Ficaram a saber, da pior maneira,
que há pessoas que 
as forçaram a fugir 
da sua escola, da sua casa e da sua terra.
E lhes roubaram o sorriso.