30/03/22

Os bons e os maus, o bem e o mal


Imagem aérea do edifício da Cruz Vermelha que foi atingido em Mariupol


Tolstoi, em Ressurreição, refere o seguinte: "Um dos preceitos mais enraizados e mais geralmente admitidos é o de acreditar que os homens possuem em si qualidades imutáveis: há homens bons ou maus, inteligentes ou estúpidos, enérgicos ou apáticos, e por aí adiante. Ora, os homens não são assim. " (Educar em diálogo, Checoslováquia: 50 anos depois)
Os acontecimentos na Ucrânia, infelizmente, mostraram mais uma vez que há comportamentos errados, há agressor e agredido, e, neste caso, deve haver uma condenação clara daquele, e não ficar pelas generalizações com que se está de acordo. Sim, somos todos pela paz e contra a guerra mas não se pode ignorar a situação concreta de um país que invade e arrasa outro, gerando enorme sofrimento. Para Francisco José Viegas ("A origem das espécies", 02.03.22), “O falso pacifismo, que exige a rendição da Ucrânia para satisfazer o fantasma russo, equipara a nação invadida ao estado invasor. É uma equidistância imoral, que comprova que o mal continua a ter muita saída.” *

Não há bons nem maus neste conflito, ou seja os ucranianos e os russos não são os bons e os maus deste conflito. Há pessoas boas e más de cada um dos lados. Além disso, há muitas situações erradas do lado de quem está certo e foi agredido.
Os militantes do cancelamento estão certamente errados. Mais uma vez vieram mostrar que, querendo estar ao lado das vítimas, mais não fazem do que colocar-se ao lados dos agressores que até utilizam este argumento para mostrar a falta de liberdade nos países das vítimas.
A “cultura” do cancelamento, em tempo de guerra ou em tempo de paz, é sempre repugnante e não é senão uma forma de censura generalizada.

Porém, há maldade e bondade. Há pessoas más e pessoas boas. Pessoas que fazem sofrer outras, como está a acontecer todos os dias na Ucrânia. E neste sentido podemos perguntar com Jordan Peterson, em 12 regras para a vida - um antídoto para o caos: “Há algo de que não posso duvidar? Da realidade do sofrimento. Porque não tolera argumentos. Os niilistas não podem miná-la com ceticismo. Os totalitários não podem bani-la. Os céticos não podem escapar da sua realidade. O sofrimento é real, e a engenhosa forma de infligir sofrimento no outro, por si só, está errada. Isso tornou-se a base da minha crença. Se eu procurar nos estados mais baixos do pensamento e da ação humana, compreendendo a minha própria capacidade para agir como o guarda nazi da prisão, ou como o capataz d’ O arquipélago de Gulag, ou como um torturador de crianças numa masmorra - compreendo o que significa “ficar com os pecados do mundo”. Cada ser humano tem uma imensa capacidade para o mal. Cada ser humano entende, a priori, talvez não aquilo que seja bom mas certamente o que não é. E se há algo que não é bom então há algo que é bom. Se o pior pecado é o tormento dos outros, o sofrimento gratuito — então, o bem é algo diametralmente oposto. O bem é o que impede que essas coisas aconteçam." (pag254-255)


Até para a semana com muita paz

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* Como é o caso, por exemplo, do comunicado do Conselho Português para a Paz e Cooperação (CPPC) onde é referido que “acompanhou com grande apreensão o agravamento da situação no Leste da Europa, que levou a uma nova escalada no confronto militar que tem tido lugar na Ucrânia desde 2014 e à intervenção militar por parte da Federação da Rússia neste país." 








22/03/22

Psicologia e fé

 


O que é a fé? Pode o ser humano viver sem fé? Que importância tem a fé na nossa vida? 

O psicanalista Alexander Lowen (La depresion y el cuerpo, Alianza Editorial, Madrid,1972, pags. 175-201) diz-nos que a palavra "fé" surgiu espontaneamente durante o estudo da natureza da depressão. Verificou que uma pessoa enquanto conservava uma fé forte e activa progredia na vida sem se tornar deprimida. Lowen concluiu, assim, que o doente depressivo é uma pessoa sem fé. Claro que como psiquiatra vê esta pessoa como uma pessoa doente.

Segundo Lowen, o desencantamento do mundo em que vivemos traduz-se na procura de diversão e de estimulação e os jovens são os que mais manifestam esta falta de fé, nos seus escritos, nos seus protestos, nos consumos excessivos. Têm pouca fé no futuro desta civilização.

Podemos verificar que quanto mais cresce a depressão no mundo, simultaneamente, mais diminui o número de pessoas que têm fé, ou seja, estamos vivendo tempos depressivos.

 

Sendo a fé do domínio religioso e místico  não se pode estudar nem controlar  por meios objetivos nem explicar com princípios racionais e científicos.  Esta posição, muito evidente em Freud e outros  psicanalistas, não deveria impedir-nos de examinar o papel que  a fé joga nas vidas humanas. Se tentamos compreender a condição humana em termos de conceitos objetivos e científicos deixamos de fora um grande parte da experiência humana. As relações entre as pessoas ou de uma pessoa com o seu meio, ou de uma pessoa com o universo pertencem a este domínio. A religião surgiu da necessidade de compreender estas relações.

 

A fé é uma experiência diferente do conhecimento. É mais profunda do que este. Rezar é um bom exemplo disto. Muita gente reza para se acabar a guerra rapidamente ou  para que uma pessoa venha da guerra sã e salva ou para que uma pessoa recupere  de uma doença.

Estas pessoas podem acreditar que rezar não resolve o curso dos seus problemas. No entanto, rezar é uma expressão de fé e isso tem um efeito positivo e graças a esse efeito são capazes de suportar o peso  dessa vivência.

Ter fé não significa que exista uma divindade omnipotente. O poder da oração baseia-se na fé que a pessoa manifesta. Dizem que a fé faz milagres e existem boas razões para acreditar nisso. 


A oração não é o único caminho para expressar a fé. Um  acto de amor também é uma questão de fé. Tal como a complexidade e a interdependência  das pessoas leva a concluir que a ordem social seria impossível sem a fé: O trabalhador tem fé que pode  comprar o que necessita com o dinheiro que ganha, o paciente tem fé que o médico fará o possível para o curar. 

Os seres humanos viveram em comunidades durante milénios e desta longa experiência  adquiriram  fé no esforço cooperativo. Se essa fé desaparecesse seria o caos.

Os pacientes depressivos têm a mesma necessidade de funcionar como todas as pessoas porém falta-lhes motivação. Rendem-se. Perderam a fé, resignaram-se a morrer. Portanto, a fé pode fazer a diferença em situações de crise.

 

 Até para a semana com muita fé.







 

16/03/22

“O império em vão se contempla...”

Área destruída por bombardeio em Mariupol



Assistimos, atónitos, em 24 de Fevereiro, à invasão da Ucrânia. Chocante. Mas esta guerra é particularmente chocante pela forma como foi anunciada e iniciada e pelo timing em que o foi. Ainda não estávamos refeitos do pesadelo de mais de dois anos de pandemia covid 19, e já o senhor da guerra, Putin, lançava não só a Europa mas o mundo na maior crise humanitária desde 1945. 
Nesta guerra, sim, guerra e não “operação militar especial”, como na novilíngua do Ministério da Verdade (George Orwell, 1984), houve apenas um agressor e dois povos agredidos: um povo que teve que se defender e está a ser destruído, com milhares de vidas ceifadas, com estruturas completamente arrasadas, e o seu próprio povo que silencia e oprime.

É por isso um tempo de lamentação, de silêncio, de meditação... mas também de raiva:
- porque o ser humano continua a sobrepor o seu lado violento à cooperação com outros seres humanos;
- porque devíamos estar a construir a paz e, em vez disso, obrigam-nos a viver este sobressalto da guerra;
- porque voltou a escalada armamentista como reacção viciosa e pelo medo a esta guerra o que significa o rearmamento da Europa e de todo o mundo e mais uma vez o investimento vai ser feito no “complexo militar-industrial”; 1
- porque mais uma vez triunfou a razão da força contra uma saída pela negociação e pelo diálogo para resolver conflitos.
Este é também um tempo de desencantamento. Com actores diferentes, a história repete-se, o terror voltou, a tragédia está a acontecer novamente na Europa: o desencantamento da primeira metade do século XXI tal como o desencantamento da primeira metade do século XX .
E pior: se pensarmos que pode voltar a acontecer. Porque para quem resolve conflitos pela guerra, qualquer pretexto pode servir.

A guerra é sempre igual, tem sempre os mesmos resultados: mortos, feridos destruição. Seja quem for o agressor e invasor. 
O povo é sempre quem mais sofre: as famílias, as crianças, os idosos ... E, sim, estou a apelar ao sentimento das pessoas. 
Começa assim o poema de Rainer Maria Rilke “Carlos XII da Suécia cavalga pela Ucrânia” 2 :
"Os reis das lendas 
são como montes ao anoitecer. Cegam 
aqueles para os quais se voltam.
Os cintos que apertam os seus quadris 
e as pesadas caudas dos seus mantos 
custaram países, vidas.
Juntamente com as suas mãos ricamente enluvadas 
vai a espada, esbelta e nua."
De facto, as guerras custam países e vidas. 
No poema “Os czares” Rilke escreve: “É a hora em que o império em vão se contempla nos muitos espelhos do seu esplendor.” (p.177)
Em vão se fazem guerras para obter a paz. 
Por isso, resta ainda a esperança de que as guerras façam parte do nosso lixo psicológico. 3
O diálogo, as conversações e os compromissos são sempre a alternativa para encontrar o caminho da paz.


Até para a semana com muita paz.

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1. Como refere Albert Szent-Györgyi em O macaco louco, crescer faz parte da biografia dos exércitos por duas razões: um exército origina sempre um contra-exército e, em segundo lugar, "é o ele ser mantido ocupado, pelo que cria incidentes, arrastando o seu país para a guerra e para empreedimentos de resultado duvidoso. É este género de actividade que levará ao desmembramento das NaçõesUnidas, a única esperança da humanidade” (p.47) 
Podemos perguntar onde estão as Nações Unidas? Podem fazer mais do que pedir "em nome da humanidade"? 

2. O livro das imagens, Relógio d'Água, p.151

3. Esta guerra nunca devia ter começado mas uma vez iniciada devia terminar imediatamente. Os estragos já são mais do que suficientes para todos perceberem que não há justificação para tanto sofrimento. Até agora quase três milhões de refugiados. Os mortos e feridos não serão nunca meras estatísticas.

 


Rádio Castelo Branco




10/03/22

Pelas crianças


 CRIANÇAS


“Todos os ditadores são lineares”



Por que  surgem sempre novos ditadores ? Por que a educação não leva a evitar os erros do passado e a criar seres humanos que sejam melhores para o seu semelhante ?

A psicologia e psicopatologia do pensamento ajudam-nos a compreender o funcionamento mental destas pessoas.


Para Augusto Cury, existem três tipos de pensamento: um inconsciente, o pensamento essencial, e dois conscientes, os pensamentos dialéctico e antidialéctico.

O pensamento essencial está na base da formação do pensamento antidialéctico e, posteriormente, do dialéctico. É o primeiro resultado da leitura da memória e é fundamental na construção dos pensamentos conscientes: interpretações, compreensão, definição, conceituação. (p. 138)

A criança começa por ser perguntadora, no jardim de infância, e a pouco e pouco durante a educação escolar vai fazendo menos perguntas. No secundário isso verifica-se ainda menos e  quando chega à universidade deixa de haver perguntas. (p. 140)

O processo de socialização - educação na família e na  e na escola -  faz o seu trabalho. “Muitos pais corrigem os seus filhos sem refletirem sobre o instrumento de correção  que usam...”. 

“Tais pais desconhecem que sob o enfoque da gestão da emoção  deviam usar também o pensamento antidialético para pensar antes de reagir e olhar os seus filhos com generosidade. Pais que são excessivamente lógicos, cartesianos, enfim, dialéticos são também intolerantes e, ao corrigir os efeitos, em vez de deterem as causas de determinados comportamentos, bloqueiam a formação de mentes livres, resilientes e maduras.” (p. 132)

Ou seja, o pensamento dialético é muito importante mas “precisa do pensamento antidialético para ter profundidade; caso contrário torna-se superficial, parcial, frio.”

Por sua vez, o pensamento antidialético também precisa do pensamento dialético para ser fonte de criatividade produtiva e útil; caso contrário leva ao desenvolvimento de uma imaginação autodestrutiva.” (p.137)


“Todos os ditadores experimentaram limitações cognitivas importantes após ascender ao poder. Construíram um raciocínio simplista, parcial, tendencioso, egocêntrico. Tiveram uma racionalidade abaixo da média, mas uma voracidade pelo poder muitíssimo acima da média. Foram hábeis no uso de armas mas não na gestão da emoção. Foram mais hábeis ainda a construir fantasmas emocionais no inconsciente coletivo com discursos paranóicos. Normalmente são o assombro e a passividade do povo que alimentam os ditadores, principalmente no início do processo ditatorial quando estes são mais frágeis.” (p. 141)

Estaline, “serviu o seu próprio ego e ideias, porém não o seu povo. Como  qualquer ditador com limitações cognitivas, era paranoico, sentia-se perseguido pelos monstros que ele mesmo criava no teatro da sua mente. A necessidade neurótica de poder encarcerou o desenvolvimento saudável do pensamento antidialético. Estaline não conseguia pôr-se no lugar dos outros e pensar antes de reagir, reagia como animal irracional."  (p. 141-142)

"Hitler era um  analfabeto emocional,  desconhecia a  linguagem da compaixão, da generosidade, do altruísmo, da serenidade." (p. 143)


Diz-nos Cury: “Sem o pensamento antidialético não há gestão da emoção; sem gestão de emoção a nossa espécie ainda chorará lágrimas incontidas.” (p. 143)

Nem mais. Acontece neste momento, por todo o mundo, devido à guerra na Ucrânia.

 

 

 

Até para a semana, com muita paz.






 

02/03/22

Guerra – o colapso do ser humano


  

Daqui



 

É horrível, de todos os pontos de vista, que se tenha chegado aqui.

É impensável, inacreditável, inaceitável... todas os adjectivos de descrença  se aplicam a esta forma de resolver os conflitos entre pessoas, organizações  e nações.

Não há alternativa para a paz. A guerra é uma forma obsoleta e errada de resolver conflitos: não resolve nada e, pelo contrário, ainda produz a escalada do conflito sempre mais perigosa e violenta do que a etapa anterior. 

 

Os comportamentos pessoais violentos no processo conflituoso são facilitados nos  regimes autoritários em que não há alternativas.

Nas democracias os conflitos* resolvem-se  por acordos em que todos podem e devem ganhar porque desde logo a paz  é um ganho. 

A liberdade e os processos democráticos fazem com que os líderes sejam substituídos sem dramas e há sempre alternativas às posições radicais e extremadas. 

Se olharmos para o mundo, vemos que,  onde não há democracia, os conflitos internos ou externos, estão sistematicamente presentes com grande violência chegando mesmo à rotura da guerra.

 

Estes líderes autoritários mostram grande incompetência do ponto de vista racional e emocional.

Podemos estar a lidar com psicopatas ou sociopatas, certamente  estamos a lidar com pessoas com perturbação narcísica da personalidade.

O líder autoritário – o ditador - faz ameaças aos seus adversários e a todo o mundo para impor os seus pontos de vista,  encontra justificações históricas para apoiar as suas decisões irracionais, uma espécie de história do cordeiro e do lobo, em que a acusação acaba por ser sempre: “se não foste tu, foi teu pai”.

 

O líder autoritário é um incompetente comunicacional. Começa por se vitimizar e passa a agressor facilmente - até ao limite da irracionalidade da guerra - com a promessa de salvar os que ataca, das mãos dos  supostos inimigos. (modelo de Karpman)

 

O líder autoritário é um incompetente emocional. Não se emociona com o sofrimento dos outros. Não tem empatia. Importa-se apenas com a satisfação das suas ambições. 

Aquilo que do ponto de vista etológico faz recuar qualquer ser humano, para o líder autoritário nada disso interessa. Ver o sofrimento duma criança é só por si, dissuasor da violência. As imagens de crianças em fuga levadas pelas mães, que não compreendem o que está a acontecer, não entendem o que é a guerra, não entendem porque estão a lutar uns contra os outros, não compreendem a maldade  que lhes rouba os pais, os amigos, a escola, as brincadeiras, porque têm de fugir para onde o barulho das bombas deixe de se ouvir...

 O líder autoritário não é capaz de controlar as emoções destrutivas. Pelo contrário, inflige mais sofrimento ao que chama de inimigo mas também ao seu próprio povo.

O sofrimento do outro resvala na carapaça de indiferença, de frieza, sem empatia,  porque ele tem uma missão a cumprir que só ele sabe qual é e lhe foi auto-confiada, e, por isso, elimina fisicamente os adversários um a um, em qualquer lugar do mundo e, através  das organizações do estado autoritário, controla a liberdade das pessoas, da informação e comunicação livres...

 

O que se segue  à devastação da Ucrânia ?

É urgente que a liberdade e a democracia façam parar  estes líderes autocráticos e falhados.

 

 

Até para a semana, com muita paz.



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* Falamos de conflito numa organização "quando uma parte (um indivíduo ou um grupo) percebe o outro como um obstáculo à satisfação das suas preocupações, o que vai levar a um sentimento de frustração, o que poderá conduzir posteriormente a reagir face à outra parte." Alain Rondeau, La gestion des conflits dans les organizations"  in Chanlat, J-F, L'individu dans l' organisation , les dimensions oubliées, pag.508.