26/03/20

As coisas vão ficar bem

Pink Martini

...
You gotta hold on, hold on through the night
Hang on, things will be all right
Even when it’s dark
And not a bit of sparkling
Sing-song sunshine from above
Spreading rays of sunny love

Just hang on, hang on to the vine
Stay on, soon you’ll be divine
If you start to cry, look up to the sky
Something’s coming up ahead
To turn your tears to dew instead
...




(5-4-2020)  Pode não parecer mas o título deste post, a frase da canção dos Pink Martini,  está em concordância com este. A intenção - as coisas vão ficar bem! - é intemporal. Aliás, a capa do disco é extraordinária e manifesta essa característica exclusiva, de risco e de segurança, presente no jogo pai-filho.




25/03/20

Quem poligrafa o polígrafo?

Ovelhas
Daqui *
"Quinze ovelhas inscritas numa escola em França por falta de alunos"


A construção da identidade faz-se de uma forma integrada em que “a dimensão biológica, a vivência pessoal das experiências e o meio cultural dão sentido aos percursos do indivíduo.” ( Erikson).
Para alem da dimensão biológica, o desenvolvimento infantil depende deste processo de socialização, ou seja, a criança “é conduzida a adquirir regras de vida, hábitos, modos de pensar, esquemas espaço-temporais, crenças e ideais, conformes ao meio social em que se eduque". (Piéron)
É através deste processo que a criança faz a aprendizagem das normas e modelos** da sociedade em que vive.
De todo este processo de socialização na aquisição da identidade resulta a adaptação saudável e normal ou o desvio, a anomia e o conflito. 

Porém, o processo de aquisição da normalidade também pode ser desadaptado. Neste caso falamos de normose ou normopatia. 
Para Pierre Weil “A normose pode ser considerada como o conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir aprovados por um consenso ou pela maioria de pessoas de uma determinada sociedade, que levam a sofrimentos, doenças e mortes.”  Este é um processo automático e inconsciente. “Podemos falar, no caso, do comportamento de rebanho”. Ou de “Maria vai com as outras”...
Como sabemos é mais difícil pertencer a uma minoria porque se está mais exposto e mais vulnerável. Ao inverso, estar com a maioria é mais fácil e fica-se mais bem visto.

As redes sociais tornaram-se um meio fácil, muitas vezes anónimo, e facilitador desta normalidade patológica. Muitos likes, ou hashtag qualquer coisa, são um bom exemplo da falta de objectividade e de capacidade crítica dessas pessoas.
Vivemos inundados de informação porém nunca foi tão necessário sabermos quando se trata de informação falsa (fake news). Então inventamos os programas de fact-cheking, como o polígrafo, que supostamente, nos informam da verdade das notícias. Mas quem poligrafa o polígrafo ?

Talvez uma boa maneira de lidar com esta situação seja o kalama sutta
Sutta é a resposta de Buda.
– Não acreditem em nada apenas porque ouviram.
– Não acreditem em tradições meramente porque elas são antigas...
– Não acreditem em nada por conta de rumores ...
– Não acreditem em nada porque foram mostrados testemunhos escritos por algum sábio antigo.
– Não acreditem em nada que vos tenha agradado, pensando que, pelo facto de ser extraordinário, deva ter sido inspirado por um deus ou uma criatura maravilhosa.
– Não acredite em nada meramente porque a presunção está a seu favor, ou porque seja um costume de vários anos e vos leve a crer como verdadeira.
– Não acredite em nada meramente baseada na autoridade dos professores e sacerdotes.
– Mas, seja como for, se depois de completa investigação e reflexão, você achar que está de acordo com a razão e experiência, que leve ao seu bem e benefício e a todos pelo mundo fora, aceite como verdade e molde a sua vida de acordo com ela.
- Este mesmo texto, segundo o Buda, deve ser aplicado aos seus próprios ensinamentos.
- Não aceite nenhuma doutrina que venha da reverência mas teste-a como testamos o ouro com fogo.

______________________
* Uma boa e insólita estória. Não dá para acreditar... Verdadeira ou falsa ?
** Norma - Tipo de comportamento ou modo de pensar comum a uma determinada sociedade. Modelo (pattern) - é comum e é desejável ser seguido (dimensão axiológica e dimensão coerciva; sanções para quem não os assumir).

(5-4-2020) Não deixa de ser curioso que um programa, chamemos-lhe assim, por princípio completamente independente, estabeleça um acordo com um serviço do estado, mesmo quando nos parece merecer toda a credibilidade. E já vimos, por estes dias de aflição, que há muitas informações que afinal não são bem assim...






23/03/20

Mesmo com o coração doendo...


Madeleine Peyroux - Smile
    

Sorria, embora seu coração esteja doendo
Sorria, mesmo que ele esteja partido
Quando há nuvens no céu
Você vai sobreviver
...

19/03/20

Nos anos 50 ...

Les Paul e Mary Ford - How High The Moon (1951)

Les Paul (Lester William Polsfuss;  9 de junho de 1915 —12 de agosto de 2009), foi um virtuoso guitarrista e pioneiro no desenvolvimento de técnicas e instrumentos musicais eléctricos.

Gibson Les Paul é uma guitarra de corpo sólido que começou a ser vendida em 1952. A Les Paul foi desenhada por Ted McCarty e criada em colaboração com o popular guitarrista Les Paul, a quem a Gibson convidou para aprovar o novo modelo. Esse é um dos modelos de guitarra mais conhecidos do mundo, juntamente com os modelos Stratocaster e Telecaster da Fender e SG da própria Gibson. (Wikiipédia)


Somewhere there's music
How faint the tune
Somewhere there's heaven
How high the moon
There is no moon above
When love is far away too
Till it comes true
That you love me as I love


 
Frank Sinatra - When You're Smiling (1951)


When you're smilin', when you're smilin'
The whole world smiles with you
When you're laughin', when you're laughin'
The sun comes shinin' through


Em 1951, era  música assim que passava na telefonia.
Para o meu pai, neste estranho 19 de Março. 




18/03/20

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso."

O 3 de Maio de 1808 em Madri, Francisco de Goya
"Os fuzilamentos de três de Maio", de Francisco de Goya, 1814, Museu do Prado, Madrid.

História das Artes


“Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso."
É assim que começa o poema de Jorge de Sena. Um espantoso poema sobre a crueldade de alguns homens  e também sobre a humanidade de outros.
É um poema sobre Goya e a sua pintura onde mostrou compaixão por aqueles  que, em Espanha,  foram fuzilados pelo exército de Napoleão quando das invasões francesas e da guerra peninsular.
A revolução francesa trouxe à sociedade  os princípios  de "liberté, égalité, fraternité"...  mas será difícil encontrar um tempo que negasse de forma tão eloquente este slogan. Este tempo produziu  Napoleão, que primeiro se mostrou a favor do rei mas depois a favor do jacobinismo e da revolução. Um tempo que trouxe logo a seguir a opressão de outros povos para além do próprio povo, como se pode concluir da aventureira invasão da Rússia em que dos 600 000 soldados que a fizeram, regressaram apenas 30 000.
A  guerra peninsular com todas as atrocidades cometidas em Espanha e em Portugal, como aconteceu, por exemplo, em Castelo Branco e na Beira Baixa*,  produziu esta crueldade de que "fala" a pintura de Francisco de Goya ou a poesia de Jorge de Sena mas ao mesmo tempo, a compaixão para com os inocentes e os que não aceitam o invasor.
Os exércitos de Napoleão ocuparam a Espanha, mas no dia 2 de maio de 1808 os cidadãos de Madrid levantaram-se contra os franceses. 
Este levantamento levou o  exército francês a executar uma terrível vingança, matando os que se revoltaram e aqueles que nada tinham feito.
Foi este acontecimento que Goya, em 1814, homenageou no quadro "Os fuzilamentos de 3 de Maio", uma forma de denunciar os comportamentos desumanos, impiedosos, injustos e terríveis praticados pelos franceses.

De vez em quando surge na história um ditador que acha que pode construir impérios à custa da ocupação de outros países e da crueldade para com as pessoas.
Todos os  impérios têm pés de barro e acabam por desaparecer mas parece  que nada aprendemos  com as lições da história. 
Nos nossos dias, como em tantos outros momentos da história, podemos dizer "Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso".
A imprevidência dos governos, a imprudência e o desleixo das pessoas, já é quadro suficientemente assustador, como o que vivemos actualmente a nível da saúde mundial, para perturbar a nossa felicidade.
Isto bastava para terminar  com devaneios imperiais, domínios geográficos e territoriais, as guerras, a imensidão de refugiados, o tráfico de homens, mulheres e crianças, o tráfico de armas, o tráfico de drogas... 
Pelo contrário: Nem liberdade, nem igualdade e muito menos fraternidade.

Mas, apesar destes horrores, talvez haja  esperança como Jorge de Sena nos dá a entender:
“E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.”


CARTA A MEUS FILHOS
Sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

16/03/20

Para este tempo estranho - You're Not You

Um filme sobre ELA. "Um ponto de viragem" (You're Not You).
Passou a horas impróprias um dia destes num dos canais.

Para este tempo estranho - La Bohème

 


Hoje no Mezzo.
La Bohème - Opera in four acts by Giacomo Puccini (1858 - 1924)
Libretto by Giuseppe Giacosa and Luigi Illica after Henry Murger's 'Scènes de la vie de bohème'
First performance in Turin, Teatro Regio, on the 1st of February 1896

Orchestra e Chorus of the Gran Teatre del Liceu
Marc Piollet (Conductor)
Saimir Pirgu (Tenor) : Rodolfo
Eleonora Buratto (Soprano) : Mimi
Gabriel Bermudez (Baritone) : Marcello
Olga Kulchynska (Soprano) : Musetta
Jonathan Miller (Stage Direction)

Recording: June 18 2016 - Gran Teatre del Liceu | Barcelona
Director: Stéphane Lebard
Duration: 01:51


MIMÌ
(um pouco titubeante, decidindo-se, depois, a falar; sempre sentada) 
Sim. Chamam-me Mimì mas o meu nome é Lucia.
A minha história é breve. Em tela ou em seda
bordo em casa e fora. Sou tranquila e feliz e divirto-me a representar lírios e rosas.
Gosto das coisas que possuem esse doce poder,
que falam de amor, de primaveras,
que falam de sonhos e de quimeras,
aquelas coisas que se chamam poesia...
Compreendeis-me?

RODOLFO 
(comovido) 
 Sim.

MIMÌ
Chamam-me Mimì, o porquê não sei.
(com simplicidade)
Sozinha, preparo as refeições para mim.
Nem sempre vou à missa
mas rezo com frequência ao Senhor.
Vivo só, sozinha lá num quarto branco:
olho para os telhados e para o céu,
(levanta-se)
mas quando chega o primeiro degelo
o primeiro sol é meu...
o primeiro beijo de Abril é meu!
Rebenta uma rosa num vaso.
Folha a folha a espio! *
Tão gentil o perfume de uma flor! 
Mas as flores que eu faço, infelizmente! ... não deitam cheiro!
Mais não saberia o que lhe contar: sou a sua vizinha
que o vem importunar fora de horas.

(04 Os Clássicos da Ópera - 400 anos, pag.46)


_______________________________________
*"Foglia a foglia l'aspiro"

13/03/20

A era da ansiedade

Coronavirus

De repente, a nossa vida ficou sujeita a um acontecimento que ninguém previu e que se transformou na primeira prioridade da vida de todas as pessoas, de todos os países, em todo mundo - a pandemia do coronavírus.
Normalmente, quando surge uma situação inesperada, como esta,  as pessoas apresentam  também comportamentos inesperados, circulam fake news  de toda a ordem,  gente a falar do que não sabe, soluções “milagrosas” que nada têm de cientifico…
Tudo isto porque o medo do contágio aceita qualquer explicação ou qualquer solução para o problema.

Nassim Nicholas Taleb, em 2007, escreveu O Cisne Negro, onde alertou para o impacto que alguns acontecimentos têm na nossa vida e de como as pessoas são ultrapassadas pelo inesperado.
Este impacto  do altamente improvável tem essencialmente três aspectos:
Em primeiro lugar, é atípico encontra-se fora das nossas expectativas normais porque nada que tenha ocorrido no passado pode apontar de forma credível para esta possibilidade. 
Todos os anos morrem milhares de pessoas com o vírus da gripe. Porém, com estas características não tinha acontecido nada de semelhante.
Segundo, reveste-se de um enorme impacto. Este impacto verifica-se não só na economia mundial e de cada um dos países mas é a própria vida das pessoas, as relações entre elas, o modo de vida, as varias expressões da cultura e do desporto que ficam postas em questão e que mudam a forma de vivermos.
Terceiro, apesar do seu caracter desgarrado, a natureza humana faz com que construamos explicações para a sua ocorrência depois de o facto ter lugar tornando-o compreensível e previsível.
Segundo Taleb,  desde o final do Pleistoceno, portanto quando apareceram os primeiros hominídeos, há uns bons milhares de anos, que os Cisnes Negros têm vindo a aumentar. Começou a acelerar durante a revolução industrial, com a cada vez maior complexificação do mundo, enquanto os acontecimentos banais, aqueles que estudamos, discutimos e tentamos prever a partir do que lemos nos jornais, se tornaram crescentemente mais inconsequentes.
Imagine a dificuldade do conhecimento do mundo nas vésperas dos acontecimentos da primeira grande guerra,  em 1914. Pense no atentado terrorista de 11 de Setembro de 2001. Pense no tsumami ocorrido no Pacífico, em Dezembro de 2004 ou na crise financeira de 2007-08.
Para Taleb, “a vida é muito estranha”. Um acontecimento raro equivale à incerteza  e, por isso, é mais importante estudar os acontecimentos raros para podermos perceber os acontecimentos mais vulgares.

Que fazer perante o problema de saúde pública tão invulgar como o coronavírus ?
Vivemos num mundo onde a Ordem e o Caos estão cada vez mais interligados e presentes. Jordan Peterson escreveu 12 regras para vida - Um antídoto para o caos. 
A Ordem é quando as pessoas ao nosso redor agem de acordo com normas sociais bem definidas, comportando-se de forma previsível e cooperante. É o mundo da estrutura social, dos territórios explorados, do que nos é familiar.
O Caos é, por outro lado, quando acontece algo de inesperado. O caos é o que acontece na sua forma mais trágica quando de repente somos atingidos por uma doença inesperada, perdemos o emprego ou somos traídos numa relação amorosa. A incerteza é a marca da nossa época.

Luis Rojas Marcos (Prólogo,  Ansiosa-mente , Pilar Varela, 2002) diz-nos que cada era produz a sua forma típica de patologia psicológica. No principio do século XX, a neurose obsessiva e a histeria... Há uns  40 anos brilhou a geração do narcisismo, a idade do culto do individuo, às suas liberdades, ao seu corpo e a devoção fanática ao êxito pessoal, ao dinheiro e ao consumo.
Hoje, fomos invadidos (em meu entender, não apenas a comunidade Ocidental)  por um novo mal: a ansiedade.
Este acontecimento, o coronavírus, torna-nos ansiosos como é normal.  Mas a ansiedade excessiva e persistente mantém-nos apreensivos, assustadíços, tímidos, obsessivamente preocupados, e rouba-nos a felicidade.
Não podemos deixar que isso aconteça mas não podemos deixar de aprender  a preparar-nos para o inesperado.






08/03/20

8 de Março: Reflectir, honrar e agir



Dia Internacional da Mulher: Porque é que ainda se celebra este dia?
"É um dia em que todos devemos refletir acerca do progresso a nível de direitos humanos, e honrar a coragem e determinação das mulheres que ajudaram e continuam a ajudar a redefinir a história, local e globalmente."
"Apesar de todos os avanços relativos aos direitos das mulheres, nenhum país atingiu a igualdade plena entre homens e mulheres."
Mas há uns piores do que outros: Professor condenado à morte por ensinar que as mulheres têm direitos assim como os homens.

Sobre o 8 de Março, escrevi, em 2017:  8 de Março: Mitos e realidade.


04/03/20

A Sonata de Kreutzer

Beethoven - Sonata Nº 9. Op.47. Kreutzer.
(Anne-Sophie Mutter - Lambert Orkis)
   
0:49 - I. Adagio sostenuto – Presto  
16:29 - II. Andante con variazioni 
34:59 - III. Presto


A Sonata para violino n.º 9, em lá maior, op. 47, de Ludwig van Beethoven (1770-1827) foi inicialmente dedicada a George Bridgetower, que chegou a Viena no início de Abril de 1803. Porém, consta que devido a uma forte discussão sobre o aspecto duma mulher… Beethoven, furioso, desistiu da oferta que tinha feito a «Bridgetower», e acabou por dedicar a Sonata a um seu grande amigo, violinista, Rodolphe Kreutzer.

Em 1889, Lev Tolstói (1828-1910), publicou uma história breve intitulada "A Sonata Kreutzer", que é uma análise dos comportamentos da época - que no fundo são intemporais - no que diz respeito às relações homem-mulher, ao divórcio, e ao fluir das paixões e das emoções de forma desequilibrada e violenta.
"A Sonata de Kreutzer" é um diálogo que acaba por ser um monólogo que ocorre durante uma viagem de comboio, em que estas relações são abordados por Pózdnitchev, o narrador, com uma visão bastante pessimista sobre a vida conjugal. 


Capa: Relógio D´Água Editores sobre pormenor de Kreutzer Sonata (1901)
de René François Xavier Prinet

No capítulo 23, vem a descrição sublime feita por Tolstói da influência da música no despertar do ciúme, em que mostra, pormenorizadamente, a relação-ligação do pianista Trukhatchévski com a violinista Lisa, mulher de Pózdnitchev, quando interpretam a Sonata Kreutzer.
Tolstói descreve, neste capítulo, o poder hipnotizador da música e os sentimentos terríveis que desperta em Pózdnitchev, sentimentos que até aí não tinha sentido.

As causas do ciúme são diversas, dependem da personalidade da pesssoa ciumenta, que alimentando-se da desconfiança, tortura a sua mente, mesmo com grande sofrimento psíquico.Do ponto de vista psicogenético, as causas do ciúme estão relacionadas com a infância, com a fase fálica do desenvolvimento psicossexual, em que a frustração inerente ao complexo de Édipo, é o fundamento de todos os ciúmes.
Muitos outros sentimentos fazem parte do ciúme: o sentimento de inferioridade, baixa autoestima, sentimento de injustiça, e medo inconsciente da perda do objecto amado.

O Manual Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM), define o subtipo Ciúme na Perturbação delirante (F22.0) quando o tema central do delírio do sujeito é que o seu cônjuge ou amante lhe é infiel. Esta crença surge sem causa evidente e é baseada em inferências indirectas suportadas por pequenas “evidências” (por exemplo, vestuário desarrumado ou manchas nos lençóis) que são guardadas e utilizadas para justificar as ideias delirantes. O sujeito pode tomar medidas extremas para evitar a suposta infidelidade.
O sujeito com ideias delirantes de ciúme, geralmente, confronta o cônjuge ou amante e tenta interferir na infidelidade imaginária (por ex.: restringindo a autonomia do cônjuge, seguindo-o secretamente, investigando o amante imaginário, atacando o cônjuge).


As causas do ciúme também podem estar associadas a algum quadro psiquiátrico como nos casos de alcoolismo (ciúme delirante), ou associado ao uso de outras substancias psicoativas; pode ainda estar associado a psicoses funcionais e aos transtornos ansiosos (particularmente ao transtorno obsessivo-compulsivo), e do humor (ciúme obsessivo).

As consequências do ciúme patológico são descritas por Tolstói numa complexidade de relacionamentos do casal e o narrador manifesta desde o início uma visão pessimista da vida e baixo nível de satisfação com a vida: o noivado horrível, um trabalho de Sísifo e a desgraça de ter filhos.
Em geral, como consequência, o ciúme leva à insatisfação e ao termo do relacionamento conjugal, ao adultério, à insatisfação no casamento, à violência doméstica... como já aqui vimos há algumas semanas.(Ciúme e violência doméstica)
Hoje ficamos a perceber como a complexidade do assunto requer que se pense esta violência doméstica com mais rigor, evitando tratar o assunto em termos demagógicos ou de campanha eleitoral.

________________________________________________
Obs.:

1. A capa do livro: Uma das obras mais conhecidas de René-Xavier Prinet, A Sonata de Kreutzer, fez 
parte, em 1901, da exposição «A Arte francesa contemporânea», em Stuttgart, onde foi vendida ao príncipe regente da Baviera.

2 . No capítulo 23, explica como "a música provoca um efeito sublime na alma" ou, pelo contrário...
«O almoço foi como outro qualquer, enfadonho, cheio de convencionalismos. A música começou bastante cedo. Ah, como eu me lembro tão bem de todos pormenores do sarau; parece que estou a vê-lo pegar no estojo, a abri-lo, a tirar uma colchinha bordada por uma senhora qualquer, a extrair o violino e a começar a afiná-lo. Vejo a minha mulher a sentar-se ao piano com um ar de fingida indiferença a encobrir, eu bem via, uma grande timidez (a timidez que o medo da sua inépcia, sobretudo, lhe provocava); portanto, sentou-se com ar fingido, começaram os habituais lás no piano, o pizzicato do violino, a instalação da pauta. Depois olharam um para o outro, olharam para as pessoas que se sentavam, trocaram umas palavras, e começou. Ela deu o primeiro acorde. A cara dele ficou séria à escuta, rigorosa, simpática, e depois, com o arco nos dedos cuidadosos, tocou nas cordas e respondeu ao piano. E começou...»
Pózdnichev parou, depois emitiu várias vezes o seu barulhinho habitual. Queria continuar, mas fungou e voltou a parar.
— Estavam a tocar a Sonata de Kreutzer, de Beethoven. Conhece o primeiro presto? Conhece? — exclamou. — Ooh!... Esta sonata é uma coisa terrível. Precisamente esta parte. E a música em geral. O que é isso? Não compreendo. O que é a música? O que ela nos faz? E por que é que faz o que faz? Dizem que a música provoca um efeito sublime na alma... Mentira, absurdo! Provoca um efeito, um efeito terrível (estou a falar de mim), mas não sublime. Não age na alma de modo sublime nem humilhante, mas de modo excitante. Como lhe hei-de explicar? A música faz-me esquecer de mim próprio, da minha verdadeira situação, transporta-me para outro espaço qualquer que não é o meu: a música parece que me faz sentir o que na verdade não sinto, que me faz compreender o que não compreendo, parece que com a música, posso fazer o que na verdade não posso. Explico-o assim: o efeito da música é como o do bocejo ou do riso; não tenho sono mas bocejo quando olho para alguém a bocejar; não tenho motivos de riso mas rio quando ouço alguém a rir-se.
«A música transfere-me de imediato para o estado de espírito do músico quando a compôs. Fundo-me na alma dele e, juntamente com ele, transporto-me de um estado para o outro, mas não sei por que o faço. O homem que compôs, digamos, esta Sonata de Kreutzer, Beethoven, sabia o porquê desse seu estado, um estado que o levou a praticar determinados actos, logo um estado que tinha sentido para ele mas que, para mim, não tem qualquer sentido. Por isso a música apenas excita, mas não determina. Bom, se tocam uma marcha militar, os soldados marcham, a música aqui determina alguma coisa; se tocam uma dança, dançamos, e tudo está definido; cantam uma missa, comungamos, também está definido. Mas aqui apenas há a excitação, e não se torna claro o que devemos fazer neste estado de excitação. Por isso a música é tão assustadora, por isso causa tantas vezes um efeito pavoroso. Na China, a música é uma prerrogativa do Estado. E tem de ser assim. Pode admitir-se que alguém hipnotize quem lhe apeteça, uma ou muitas pessoas, e depois faça com elas o que quiser? Sendo o hipnotizador, ocasionalmente, um homem imoral?
«Pois bem, este meio terrível cai nas mãos de qualquer um. Por exemplo, esta Sonata de Kreutzer, o primeiro presto. Será admissível tocar este presto num salão, no meio de senhoras decotadas? Ouvem, batem palmas, depois comem gelados e falam de um novo boato qualquer. Estas coisas apenas devem ser tocadas em circunstâncias importantes, significativas e quando é necessário realizar determinadas acções importantes que correspondam a esta música. Ouvir e fazer precisamente o que a música sugeriu. De outro modo solta-se uma energia e um sentimento que não correspondem ao lugar nem ao momento, e não se manifestam, o que não deixa de ser nocivo. A mim, pelo menos, esta peça influenciou-me terrivelmente; parecia que se me revelavam sentimentos e possibilidades absolutamente novos, desconhecidos para mim até àquele momento. Parecia que a minha alma me falava: isto é assim, não é como pensaste e como viveste antes. Não sabia que coisa nova me era dada a conhecer, mas a consciência do novo estado era muito feliz. As mesmas pessoas, incluindo ele e ela, eram-me reveladas a uma luz muito diferente.
«Depois do presto tocaram o andante, excelente mas banal, nada novo, com variações vulgares, e o final, então, foi mesmo fraco. Depois, a pedido dos convidados, tocaram ainda uma elegia de Ernst e algumas outras pequenas peças. Tudo muito belo, sim, mas não me produziu sequer a centésima parte daquela primeira impressão. Tudo o que ia acontecendo na música já vinha ofuscado por aquela primeira impressão. Senti-me leve e alegre durante todo o serão. Quanto à minha mulher, nunca antes a vira como naquela noite: os olhos brilhantes, a expressão rigorosa e significativa enquanto tocava e, quando acabou, o ar terno, o sorriso fraco, humilde e deliciado. Eu via tudo isso mas não lhe atribuía outro sentido senão o de que ela experimentava as mesmas sensações que eu, de que também para ela se revelavam, como que surgidos das névoas da memória, sentimentos novos nunca antes experimentados. O serão acabou da melhor maneira, todos os convidados partiram.
Lev Tolstói, A sonata de Kreutzer, Relógio D'Água, pags 89-92.

3. Da história da Sonata consta a censura que foi feita tanto na Rússia como nos EUA.
De facto, o breve romance "A Sonata a Kreutzer" foi proibido na Rússia pelos censores, mas uma versão mimeografada foi amplamente divulgada. Em 1890, o Departamento Postal dos Estados Unidos proibiu o envio de jornais contendo partes serializadas da obra. Isto foi confirmado pelo Procurador-Geral dos Estados Unidos no mesmo ano. Theodore Roosevelt chamou Tolstói de "pervertido sexual". A proibição da sua venda foi revogada pelos tribunais de Nova York e Pensilvânia em 1890.

4. O ciúme na literatura tem sido tratado por vários escritores, que descrevem este sentimento, entre eles, Tolstói n' A Sonata de Kreutzer.
No entanto, uma referência especial é sempre feita a Otelo de Shakespeare. Otelo é influenciado pela inveja de Iago, que trama uma cruel vingança, insinuando a Otelo que sua mulher e Cássio o traíam.
Otelo, a partir destas insinuações, passou a desconfiar da fidelidade da jovem com muita facilidade, através de “evidências” que, na realidade, não chegavam a ser motivos para tamanha desconfiança.
Este ciúme patológico, estes delírios de ciúme deram origem ao que se designa como a Síndrome de Otelo.