18/03/20

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso."

O 3 de Maio de 1808 em Madri, Francisco de Goya
"Os fuzilamentos de três de Maio", de Francisco de Goya, 1814, Museu do Prado, Madrid.

História das Artes


“Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso."
É assim que começa o poema de Jorge de Sena. Um espantoso poema sobre a crueldade de alguns homens  e também sobre a humanidade de outros.
É um poema sobre Goya e a sua pintura onde mostrou compaixão por aqueles  que, em Espanha,  foram fuzilados pelo exército de Napoleão quando das invasões francesas e da guerra peninsular.
A revolução francesa trouxe à sociedade  os princípios  de "liberté, égalité, fraternité"...  mas será difícil encontrar um tempo que negasse de forma tão eloquente este slogan. Este tempo produziu  Napoleão, que primeiro se mostrou a favor do rei mas depois a favor do jacobinismo e da revolução. Um tempo que trouxe logo a seguir a opressão de outros povos para além do próprio povo, como se pode concluir da aventureira invasão da Rússia em que dos 600 000 soldados que a fizeram, regressaram apenas 30 000.
A  guerra peninsular com todas as atrocidades cometidas em Espanha e em Portugal, como aconteceu, por exemplo, em Castelo Branco e na Beira Baixa*,  produziu esta crueldade de que "fala" a pintura de Francisco de Goya ou a poesia de Jorge de Sena mas ao mesmo tempo, a compaixão para com os inocentes e os que não aceitam o invasor.
Os exércitos de Napoleão ocuparam a Espanha, mas no dia 2 de maio de 1808 os cidadãos de Madrid levantaram-se contra os franceses. 
Este levantamento levou o  exército francês a executar uma terrível vingança, matando os que se revoltaram e aqueles que nada tinham feito.
Foi este acontecimento que Goya, em 1814, homenageou no quadro "Os fuzilamentos de 3 de Maio", uma forma de denunciar os comportamentos desumanos, impiedosos, injustos e terríveis praticados pelos franceses.

De vez em quando surge na história um ditador que acha que pode construir impérios à custa da ocupação de outros países e da crueldade para com as pessoas.
Todos os  impérios têm pés de barro e acabam por desaparecer mas parece  que nada aprendemos  com as lições da história. 
Nos nossos dias, como em tantos outros momentos da história, podemos dizer "Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso".
A imprevidência dos governos, a imprudência e o desleixo das pessoas, já é quadro suficientemente assustador, como o que vivemos actualmente a nível da saúde mundial, para perturbar a nossa felicidade.
Isto bastava para terminar  com devaneios imperiais, domínios geográficos e territoriais, as guerras, a imensidão de refugiados, o tráfico de homens, mulheres e crianças, o tráfico de armas, o tráfico de drogas... 
Pelo contrário: Nem liberdade, nem igualdade e muito menos fraternidade.

Mas, apesar destes horrores, talvez haja  esperança como Jorge de Sena nos dá a entender:
“E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.”


CARTA A MEUS FILHOS
Sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

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