29/03/23

Sob o signo da luz


“Tempo de mudança e data da libertação, a Páscoa é “passagem”, do Inverno para a Primavera, da escravatura no Egipto para a liberdade na Terra prometida, é um novo começo, a renovação da natureza. Mas cada um de nós vive a sua Páscoa, obviamente condicionado pela Páscoa dos que nos rodeiam. 
Várias dificuldades psicológicas acontecem connosco ao longo do ano, em especial nos tempos de festa. Momentos de maior ou menor tristeza, alegria e frustração… a nossa vida é dominada pela nossas emoções. E precisamos de uma "Páscoa" para mudarmos para uma vida mais saudável… “ ("Sistema imunológico psicológico") (1)
Sem a Páscoa “a história de Cristo terminaria com a morte e crucifixão; mas, com a Páscoa, existe o começo de uma nova vida nova, uma nova era, uma nova esperança.” (2)

A outra origem do nome ‘Páscoa’ “deriva do nome da deusa germânica Ostara que era a deusa da Primavera e da fecundidade. Um dos seus símbolos era o ovo e o seu mensageiro a lebre.
O ovo tem um papel importante no mundo inteiro nos mitos da criação para significar nascimento e tanto quanto se saiba a partir do século IV os ovos ficaram relacionados com as cerimónias da Páscoa.
“A lebre, e mais tarde o coelho, eram símbolos naturais da fertilidade porque estes animais se reproduzem com grande abundância.” (2)

Um dos símbolos mais fortes da Páscoa é o da luz cujo ritual é celebrado na Vigília Pascal. A primeira parte desta celebração diz respeito à liturgia da luz face às trevas. Começa, numa escuridão total, com o acender do fogo novo e do Círio Pascal (símbolo do Cristo ressuscitado) e o extraordinário canto do Exultet que em resumo diz:
“ Esta é a noite que brilha como o dia, 
e a escuridão brilha como a luz, 
restitui inocência aos pecadores, 
dá alegria aos tristes,
derruba os poderosos, dissipa os ódios, 
estabelece a concórdia e a paz”.

A luz existe em estreita relação com a escuridão: na história pessoal ou social, a uma época sombria segue-se uma época luminosa.
Esta é a luz do conhecimento, da tomada de consciência do novo, frente à escuridão da ignorância. 
Para os crentes, esta é a luz no caminho dos homens que vem de Cristo, Ele mesmo a luz do mundo, a luz que dissipa as trevas do mal e da morte. 
Esta luz é um sinal de que, tal como Cristo, devemos ser luz uns para os outros. Esta dimensão social é fundamental para a nossa vida. É-nos dada pela amizade e pelas relações entre pares nas instituições sociais de que fazemos parte. (3)
Há pessoas que são pontos de luz no nosso caminho como há outras que fazem parte das trevas.
Nem sempre somos capazes, sozinhos, de ultrapassar as trevas mas podemos encontrar a luz nas interacções com os outros.
Jordan Peterson (3) refere a importância do outro no nosso caminho. A importância da amizade e dos pares na nossa profissão e vida social. Os outros podem ser a luz no nosso caminho, na manutenção da nossa saúde mental.


Uma boa Páscoa.



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(2) Bruno Bettelheim, Bons Pais -  O sucesso na educação dos filhos, Bertrand Ed., (p. 625)
(3) Jordan B. Peterson, Para além da ordem - 12 novas regras para a vida, Lua de papel, (p. 34-35)



Rádio Castelo Branco



24/03/23

Respeitar os idosos


O psicólogo Erik Erikson definiu oito estádios de desenvolvimento psico-social sendo o oitavo correspondente à velhice
A resolução das crises características desta idade passa pelo equilíbrio entre a integridade e o desespero. Quer dizer, reconhecer sucessos e fracassos vividos como parte de um todo que constitui a nossa vida, como um sentimento de realização ou de desespero de uma vida insatisfatória e que já não se pode alterar.

O envelhecimento da população vem questionar-nos sobre as respostas que a sociedade cria, desenvolve e regula para que estas pessoas possam viver sem grande ansiedade o resto da suas vidas.
Segundo os dados dos censos de 2021, a percentagem de população idosa (65 e mais anos) representava 23,4%, da população. 
Por outro lado, o que também está a aumentar é a violência contra idosos.
Segundo os dados da APAV, em 2021, 1594 pessoas idosas foram vítimas de crimes.
Embora sujeitos a episódios de violência extremamente graves, apenas 35% dos idosos denunciaram o crime e apresentaram queixa contra os agressores.

Sofrem também a violência institucional. Nas últimas semanas tivemos notícias sobre alguns lares de idosos a funcionarem em condições verdadeiramente infra-humanas. 
Tudo isto faz (re)pensar no respeito que devemos aos idosos e nas estruturas para apoio de que necessitam. 
Estas notícias certamente não nos deixam indiferentes: E se fosse comigo? Sim, se fosse eu que estivesse num destes lares o que faria?

Muitos idosos - nem velhos nem trapos ou mesmo que velhos nunca são trapos - de facto, hoje, são activos e, apesar da idade, continuam a ter autonomia suficiente para não dependerem de ninguém e até contribuírem para o desenvolvimento da sociedade e das comunidades em que estão inseridos.
Mas outros são velhos com alguma forma de necessidade (dependência) física, psicológica, social, espiritual. 
Ao depararmos com estas notícias sobre lares a funcionarem em condições desumanas o que poderemos pensar ?
Será que é a resposta adequada ou apenas uma solução a que se recorre porque não há alternativa?
Se houvesse alternativa alguém escolheria passar os seus últimos dias num lar?
A vontade dos idosos é tida em conta quando se trata de tomar a decisão de ser colocado num lar?
Como é possível o que acontece em alguns destes equipamentos sem condições para as pessoas internadas?

Como fazer o balanço de que Erikson fala quando o idoso vive em condições socio-culturais bem diferentes daquelas que alguma vez pensou e tudo é favorável ao desespero ? Como resolver o dilema entre a integridade e o desespero, quando se é posto perante condições infra-humanas: fome, falta de cuidados elementares, falta de carinho, longe da família, longe de tudo e de todos ? Onde ficam os laços de toda uma vida ? Qual o lugar dos afectos ?
Também aqui “o silêncio tem voz”. É preciso respeitar os idosos e os direitos dos idosos e se a educação de cada um não chega para o fazer, a sociedade tem que ter mecanismos que os façam respeitar.


Até para a semana.

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15/03/23

Nem clericalismo nem clerofobia (2)



Tudo o que está a acontecer sobre os abusos sexuais parece-me de grande mérito, em primeiro lugar, para as crianças e pessoas mais vulneráveis, e depois para a sociedade, para a cultura, e também para a Igreja.
Como em qualquer processo há avanços e recuos, mas faz caminho esta oportunidade que não se pode perder em questões que, sendo importantes, não reflectem o fundamental: a protecção da infância e o respeito pelos seus direitos.
É positivo que toda a gente se pronuncie sobre o que aconteceu e está a acontecer e opine sobre o que deve ser feito e como deve ser feito. Penso que a maioria das pessoas faz intervenções genuínas e justas e manifesta a sua dor pela dor das vítimas.

No último texto escrevi que a crítica ao clericalismo é um passo, talvez o primeiro, para mudar alguma coisa na nossa cultura dos direitos da criança.
“O clericalismo é um excesso... O anticlericalismo configura-se como um movimento de oposição, de combate, de consciência crítica em relação a esse excesso e a essa falta.” (1)
Mas a história também nos recorda que nem todos têm a liberdade para poderem criticar aquilo que merece condenação, porque condicionados por ideário e ou interesses outros que não os da protecção das crianças.
Embora não me aventure por áreas que não sei, há episódios históricos que são bem mais cavernícolas do que a versão comemorativa de feriado e cerimónias com fanfarra do 5 de Outubro.

As críticas ao clericalismo, justas, deixam de o ser quando passam a significar violência anticlerical. (2)
O anticlericalismo muitas vezes não é mais do que luta anticristã e anticatólica. E este é o problema. Há nesta conjuntura de avaliação dos abusos quem queira fazer bem o seu trabalho e há quem procure atingir outros objectivos. O que não é novo. Basta pensar no que se passou por exemplo desde o marquês de Pombal, passando pelo liberalismo, pela 1ª república... (3)
Ao ler Colégio de S Fiel - ecos de memória, de J. Mendes Rosa – sobre o que aconteceu ao colégio de S. Fiel e aos seus professores, podemos ter a ideia do que era o ódio fóbico a tudo o que fosse clerical. Os princípios da escola de Lombroso que definiam quem era delinquente e criminoso, teve por cá os seus adeptos convictos. (4)

O Relatório da Comissão Independente não pode ser visto como um confronto com a Igreja. O trabalho que foi feito deve levar a consequências, como aliás D. José Ornelas referiu. Mas não deve ser um atropelo à justiça, aos direitos humanos, fonte de arbitrariedades e de outros abusos. Toda a gente tem direito à presunção de inocência até prova em contrário. Creio que isso se aplica também em relação aos listados.
Mas o relatório da Comissão Independente também é positivo ao dar sugestões, deixar pistas, para todo o trabalho de prevenção que é necessário fazer desde já. Dentro destas medidas ficam possibilidades de trabalho a desenvolver pela sociedade e especificamente a desenvolver pela Igreja, leigos e clero. É necessário (re)pensar práticas e encontrar as melhores formas de não permitir perversões como as que originaram esta ferida.

Até para a semana.


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1. Luís Machado de Abreu.
2. Duarte, Ricardo Diogo Mainsel, (1910-1917): Violência anticlerical na I República perspectivas antropológicas e historiográficas.
3. José Carvalho - Anticlericalismo/anticatolicismo e clericalismo/catolicismo em Portugal nas vésperas da I República (1881-1910) – breve panorâmica histórica, Faculdade de Letras da Universidade do Porto; José Adelino Maltez, Tópicos políticos (2004) - Anticlericalismo, o que é?
4. A classificação dos delinquentes segundo Lombroso.







  

05/03/23

António Salvado (1936-2023)


SE QUISERES LEMBRAR...

Se quiseres lembrar o que perdido
está        aviva o sangue flutuante
que no entanto ainda jaz nas veias.

Não servirá - tu saberás - de alívio
o perseguir aquelas marcas vãs
porque o que foi       não ganha novo enleio.

Indecisões? Um prémio passageiro?
Um sol brilhante que escondeu enganos?


António Salvado, Repor a luz


03/03/23

Nem clericalismo nem clerofobia


É muito curioso o pedido que os irmãos Tiago e João, seguidores de Jesus, Lhe fazem:  

“Mestre, queremos que nos faças tudo o que Te pedirmos”... 

“Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à Tua direita e o outro à Tua esquerda”.

Disse-lhes Jesus: “Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que eu vou beber  e receber o batismo que Eu vou receber ? ”

Eles responderam-Lhe: “Podemos”.

Jesus disse-lhes: “Bebereis o cálice que vou beber e sereis batizados com o batismo com que Eu serei batizado; mas o sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me pertence concedê-lo. É para quem está reservado”.

Os outros dez, tendo ouvido isto, começaram a indignar-se contra Tiago e João. 

Jesus chamou-os e disse: “Sabeis como os governantes das nações fazem sentir o seu domínio sobre elas e os magnates a sua autoridade.

Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós faça-se vosso servo; e quem quiser ser o primeiro entre vós faça-se escravo de todos. 

Porque o Filho do homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a  vida em resgate por muitos”. (Mt.20, 20-28)

 

O que está em jogo é o poder face aos outros, e mesmo face aos outros discípulos. A mentalidade de uns, os que fazem a petição, e outros, que os criticam, era idêntica: ter o poder.

Como ouvimos dizer, o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. Esta cultura só pode levar a abusos.

O clericalismo é o poder do clero na vida social, política e económica... é a conduta política que o clero de uma determinada religião manifesta para favorecer  os  seus interesses institucionais e materiais com o objetivo de incrementar o seu poder. (Wikipedia)

Face aos abusos sexuais verificados na igreja católica, o Papa Francisco culpou o "clericalismo" da Igreja Católica por criar uma cultura em que o abuso criminoso foi difundido e foram feitos extraordinários esforços para ocultar os crimes. 

 

O clericalismo é também abuso de consciência. Cito J. M. Pereira de Almeida: 

“Os abusos de consciência correspondem a todas as iniciativas daqueles que, exercendo um determinado poder, não respeitam a autonomia pessoal daqueles que se lhes confiam. E, em vez de os escutarem, de saberem dialogar com eles, numa atitude de serviço que caracteriza o ministério que exercem, mandam fazer, indicam como actuar, prescrevem medidas concretas. Apontando sempre (muitas vezes) para o bem ideal; em vez de ajudarem cada uma das pessoas que lhes são confiadas a decidir livre e responsavelmente o que perceba ser o bem concretamente possível, para cada uma delas, nas circunstâncias concretas em que se encontra.” * 


A alternativa a esta tentativa de poder, por parte de Tiago e João, e de todos os que querem exercer o poder, é a proposta do serviço: não vim para ser servido mas para servir. É a proposta apresentada a todos, clero e leigos, face ao exercício do poder: servir os outros a começar pelos mais vulneráveis.

 

 

Até para a semana 

 


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J.M. Pereira de Almeida - "Poder Clerical e Serviço"- comunicação apresentada no Encontro Nacional com as Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis,  Fátima 4 de fevereiro de 2023.



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