31/05/18

Narcisismo

Fala-se hoje muito de narcisismo relacionado com os comportamentos na sociedade actual, com personalidades do mundo da política e do espectáculo, que é levado ao extremo nas redes sociais. Basta ver o que se passa com a utilização do twitter e do facebook pelos dirigentes políticos e desportivos.
Mas estamos mesmo perante um mundo em que o narcisismo é uma das características principais, e que leva a que cada um tenha de si próprio a convicção de que nada de mais importante existe para além de si?
Podemos considerar o narcisismo como o mal do século e estamos perante uma geração de hipernarcisistas?
O narcisismo prejudica o desenvolvimento e é uma perturbação da personalidade?
O narcisismo leva ao culto da personalidade? E as redes sociais permitem que isso seja levado ao extremo?
Narcisismo, em termos simples, significa: "O amor excessivo por si próprio. Em psicanálise fala-se de narcisismo quando toda a energia da libido, primordialmente investida sobre o eu, e posteriormente, repartida entre o eu e os outros se desvia destes, em proveito exclusivo daquele. (Dicionário Temático Larousse - Psicologia, p. 179)
O narcisismo "não é uma doença, mas uma passagem obrigatória no desenvolvimento da criança". (Marc Olano, le cercle psy , nº 28, p. 17)
Freud distingue narcisismo primário e secundário 1. No narcisismo primário, o desenvolvimento da personalidade passa por um estado narcísico, precoce, em que o bebé ainda não se diferenciou claramente do exterior. Pouco e pouco a criança vai-se distinguindo dos outros, a começar pela sua mãe, e a compreender o seu carácter único.
No narcisismo secundário, o amor de si constrói-se a partir da imagem positiva que temos de nós próprios e que nos é reenviada pelos outros.
O narcisismo pode ser saudável ou patológico. O narcisismo saudável é o que encontra a dose certa, o equilíbrio, entre o amor de si próprio , suficientemente sólido, e a inveja de querer ir em direcção aos outros. O indivíduo sente-se bem na sua pele e ao mesmo tempo sente-se bem com os outros.
O narcisismo pode ser pouco saudável quer no caso de hipernarcisismo quer no caso de hiponarcisismo. Esta situação pode traduzir um narcisismo instável (Jean Cottraux, le cercle psy) que pode definir os altos e baixos da vida psicológica.
Nos hipernarcisistas tudo gira à volta do seu umbigo, são autosuficientes, egocêntricos, invejosos, susceptíveis... Pelo contrário, os hiponarcisistas subestimam-se, têm má auto-imagem, ficam bloqueados nas suas falhas, apenas pensam nos seus fracassos… o que os caracteriza é uma “ferida narcísica”. Confrontados com um contratempo, colapsam e têm a impressão de não servirem para nada. Qualquer piada ou falta de jeito... os altera. Podem manifestar acesso de raiva onde se confundem fúria, vergonha, angústia e culpabilidade. (Marc Olano)
O narcisismo patológico, perverso, ou perturbação de personalidade narcisista (DSM V), manifesta-se pelo menos por cinco características das nove seguintes:
- sentido grandioso da sua própria importância
- fantasias de sucesso ilimitado, de poder, de esplendor, de beleza ou de amor ideal
- imagina-se ser "especial", único
- necessidade excessiva de ser admirado
- pensa que tudo lhe é devido
- explora o outro nas relações interpessoais
- falta de empatia
- inveja muitas vezes os outros e crê que os outros o invejam
- comportamentos arrogantes e altivos

Será este quadro patológico que domina as nossas interacções sociais?
As redes sociais não inventaram o narcisismo contudo revelaram as suas formas mais excessivas. Apresenta-se Donald Trump como exemplo acabado de narcisismo (Cottraux). Mas a questão é se não será apenas um dos últimos exemplos narcisistas que têm passado pelo poder. O que dizer de Putin, na Rússia ou, na China, de Xi Jiping em que a nova ideologia será incorporada nos currículos escolares? Da Coreia do querido líder, aos ditadores de Cuba ou da Venezuela, o culto da personalidade, a húbris, mantém-se como sempre foi, mas agora com meios propagandísticos mais poderosos, com o controle dos media, designadamente da internet...
Um pouco por todo o lado, desde sempre, o narcisismo patológico tem levado muitas sociedades ao desmoronamento económico, social e ético.
E não estará em cada um de nós este padrão de admiração devolvido no espelho da nossa vaidade? 2
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1 Para aprofundar este tema.
2 Como explicar dois mil milhões de utilizadores do facebook (atingidos em 2017)? Porque "Eu selfie, logo existo"(Elsa Godart)?

25/05/18

Feiticeiros...

... da música.

Screamin' Jay Hawkins

Credence Clearwater Revival

Nina Simone

Katie Melua

Joss Stone

David Gilmore/Mica Paris


I put a spell on you
'Cause you're mine

You better stop the things you do
I ain't lyin'
No I ain't lyin'

You know I can't stand it
You're runnin' around
You know better daddy
I can't stand it cause you put me down

I love ya
I love you
I love you

I love you anyhow
And I don't care
if you don't want me
I'm yours right now

You hear me
I put a spell on you
Because you're mine

24/05/18

Fim do anonimato

Em 2015, a lei da adopção foi alterada de forma a que qualquer adoptado tem agora direito a saber quem são os pais biológicos. A informação pode ser pedida a partir dos 16 anos.
No caso da procriação medicamente assistida e da maternidade de substituição, o Tribunal Constitucional considerou inconstitucionais algumas normas. (Acórdão nº 225/2018)
Para os juízes do Tribunal Constitucional os termos dos contratos são demasiado vagos, as gestantes devem poder arrepender-se até à entrega da criança e, finalmente, rejeitam o anonimato dos dadores e da própria gestante de substituição. Reconhecendo que esta norma “não afronta a dignidade humana”, os juízes alertam para o facto de ser cada vez mais importante a questão do conhecimento das origens de cada ser humano e que, neste diploma, a opção seguida “de estabelecer como regra, ainda que não absoluta, o anonimato dos dadores no caso da procriação heteróloga e, bem assim, o anonimato das gestantes de substituição – mas no caso destas, como regra absoluta – merece censura constitucional”. (Observador, Rita Porto e Rita Ferreira)
Os juízes consideram que tal restrição, que faz com que a criança nascida através destas técnicas, não tenha previsto na lei o direito a conhecer nem os dadores, nem a gestante, é uma “restrição desnecessária aos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade das pessoas nascidas em consequência de processos de PMA com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões, incluindo nas situações de gestação de substituição”.

Conhecer as nossas origens, saber quem são os nossos pais não é apenas a inscrição numa genealogia mas é um sentimento que nos liga aos progenitores e a uma família que contribui para a construção da nossa identidade e personalidade.
É uma informação fundamental para conhecermos quem somos como seres humanos em todas as dimensões.
Uma dessas dimensões da nossa origem diz respeito à saúde. Conhecermos essas origens do ponto de vista genético pode ser fundamental, em determinadas circunstâncias, para prevenção de doenças e para uma vida saudável.
A nossa vida social, cultural e relacional também pode ser afectada pelo desconhecimento de quem são os nossos progenitores.
Nos diversos países existem as mais diversas situações sobre o problema do incesto. A legislação portuguesa "nada diz sobre relações incestuosas entre adultos e com consentimento de ambos. Significa isto que, excluindo naturalmente os casos de abuso, o incesto não é crime."
No entanto o código civil impede o matrimónio no Artigo 1602.º (Impedimentos dirimentes relativos): São também dirimentes, obstando ao casamento entre si das pessoas a quem respeitam, os impedimentos seguintes:
a) O parentesco na linha recta;
b) A relação anterior de responsabilidades parentais;
c) O parentesco no segundo grau da linha colateral;
d) A afinidade na linha recta;
e) A condenação anterior de um dos nubentes, como autor ou cúmplice, por homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o cônjuge do outro.

O direito ao conhecimento dos dadores em relação à procriação medicamente assistida (PMA) e no caso da gestação de substituição, ao conhecimento da identificação da gestante tem vindo a ser reconhecido.
O fim do anonimato não é apenas exigido pelas pessoas em geral mas também pelas pessoas que têm sido geradas por este processo. Finalmente, o anonimato tem vindo a ser questionado e abolido quer no caso da adopção, quer no caso da PMA.
O livro “O nome do meu pai é doador” *, refere uma pesquisa em que "foram ouvidos 485 adultos cujas mães recorreram a esperma doado. Dos entrevistados, dois terços gostariam de ter acesso aos dados do doador. Para 45% dos participantes, o modo como foram concebidos é razão de incómodo. A saúde também é afetada. Eles são duas vezes mais propensos a abuso de substâncias químicas quando comparados com quem conhece os pais biológicos. E têm uma vez e meia mais chances de apresentar distúrbios psicológicos".
E quais são os argumentos para se negar a uma pessoa o conhecimento de quem são os seus pais biológicos?
Finalmente, as pessoas que nasceram por este processo, podem ficar a conhecer a sua origem genética ou a conhecer a sua gestante.
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* Elas querem saber quem são seus pais
Mais alguns textos que colocam questões sobre este assunto, ou relevam o sofrimento de muitas pessoas que passaram por este processo:
- Dadores de esperma anónimos estão a ser descobertos
- Também há casos que acabam bem... mulher casa com o seu dador de esperma anónimo ("How I Met Your Father")

09/05/18

Dias da música: Berlioz - A danação de Fausto

Centro Cultural de Belém
27 de Abril 2018 - 21:00 - Grande Auditório.

Hector Berlioz (1803-1869) - A Danação de Fausto.

Aquiles Machado tenor FAUSTO
Philippe Rouillon barítono MEFISTÓFELES
Béatrice Uria-Monzon meio-soprano MARGARIDA
Arnaud Rouillon baixo BRANDER
Frédéric Chaslin direção musical
Orquestra Sinfónica Portuguesa
Joana Carneiro
maestrina titular
Coro do Teatro Nacional de São Carlos
Giovanni Andreoli
maestro titular
Pequenos Cantores do Conservatório de Lisboa
Rui Teixeira
maestro do coro
Coro Juvenil de Lisboa
Nuno Margarido Lopes
maestro do coro

Na falta da gravação do concerto aqui ficam três exemplos desta música sublime que tive o privilégio de escutar neste extraordinário concerto, no CCB.



Berlioz - A Danação de Fausto - Marcha húngara - Maestro Daniel Barenboim

Um exército marcha no horizonte. Fausto não compreende porque é que os soldados se entusiasmam tanto com a glória e a fama.


 Berlioz - A Danação de Fausto - D'amour l'ardente flamme - Elina Garanca

Fausto abandonou Margarida, no entanto a jovem ainda espera por ele ("D'amour l'ardente flamme"). Ela ouve os soldados e estudantes à distância e recorda-se da primeira noite em que Fausto apareceu na sua casa. Mas desta vez, ele não está entre a multidão. 


 
Berlioz - A Danação de Fausto - Epílogo
O inferno cai em silêncio depois da chegada de Fausto. Um coro, narra e canta sobre o "mistério do terror". Enquanto isso, Margarida é salva e é acolhida no paraíso.

Skip to my Lou

The Golden Gate Quartet (a.k.a. The Golden Gate Jubilee Quartet)
Skip to my Lou
Uma versão interesante desta popular canção infantil...

Fazer e avaliar em vez de desfazer e apagar (2)

A qualidade da educação e do ensino é um dos principais objectivos da sociedade. Qualquer governo decente deve criar ou assegurar os instrumentos necessários para atingir esse objectivo tendo em conta que, numa democracia, não tem sentido impor ideias de forma autocrática.
Nem sempre tem sido assim. De facto, vamos tendo um pouco de tudo: "paixão pela educação", "escola na sociedade de classes",  educação "cívica" do "homem novo", metas que viram competências e competências que viram metas, currículos grandes, currículos pequenos, avaliação de desempenho burocrática, feita pelos pares, uma das maiores fontes de conflito nas escolas, colocação de professores, centralizada, com critérios diferentes todos os anos, contagem de tempo de serviço, que ninguém entende que raio de contagem é...
Apesar de tudo, e isso é o mais importante, o ensino tem vindo a obter resultados que, graças ao trabalho de alunos, professores, explicadores e pais, são muito encorajadores.

Nuno Crato dá conta ("Contra argumentos não há factos" - O Observador ) de como algumas alterações na exigência, isto é, na qualidade da educação, levaram a resultados que começaram a ter expressão em provas internacionais como o  PISA E TIMSS:
"Relembremos alguns factos. Qual era a situação relativa do nosso país? No TIMSS, em matemática do 4.º ano, de entre os países participantes, estávamos no antepenúltimo lugar com 475 pontos. Atrás de nós, havia apenas a Islândia e o Irão.
No PISA, em 2000, de entre os países participantes que pertenciam então à OCDE, Portugal ocupava a antepenúltima posição em ciências e a leitura. Em matemática, só tinha três países atrás.
A taxa de abandono escolar precoce era 43,6% em 2000. Quer isto dizer que apenas 56,4% dos jovens entre os 18 e os 24 estavam a estudar ou tinham completado o Secundário. Na União Europeia apenas Malta tinha um resultado pior.
Em 2000, as taxas de reprovação eram escandalosamente altas. Atingiam cerca de 10% no 4.º ano, 16% no 9.º e 50% no 12.º.

Entretanto, tudo ou quase tudo melhorou. Fruto de um esforço persistente das escolas, dos professores, dos pais e de vários governos, chegámos a 2015 com um panorama totalmente diferente.
No TIMSS, em matemática do 4.º ano, passámos do antepenúltimo lugar para um lugar cimeiro, acima da média, com 36 países atrás de nós. Passámos de 475 para 541 pontos. Passámos à frente da mítica Finlândia!
No PISA, das últimas posições ocupadas em 2000, passámos em 2015 para cima da média da OCDE. Em leitura, subimos de 470 para 498 pontos. Em matemática, progredimos de 454 para 492 pontos. E em ciências, passámos de 459 para 501 pontos.
A taxa de abandono escolar precoce melhorou, descendo dos 43,6% em 2000 para os 28,3% em 2010 e 13,7% em 2015. Passámos à frente da Espanha e da Itália.
As taxas de reprovação também melhoraram. Em 2015, no 4.º, 9.º e 12.º anos, desceram para 2%, 10% e 30%. Ou seja, no 4.º ano, e com a Prova Final da altura, reduziu-se a retenção para quase um quarto do que era; no 9.º e no 12.º, reduziu-se para dois terços do que era."

Crato tinha a sua ideia do que era o sector da educação, desde o tempo do programa televisivo "Plano Inclinado", e apesar de críticas justas de muitos profissionais  como, em algumas questões, as de Santana Castilho, teve o mérito de contribuir para a qualidade do ensino.
Mas o que dizer dos actuais "funcionários" deste ministério e de alguns dedicados “ajudantes progressistas", na assembleia da república? Não fazem ideia nem parece que venham a fazer sobre o futuro da educação, sobre a qualidade da educação, nem que tenham a percepção do alcance pernicioso que costuma vir da demagogia das medidas que tomam.

A Sociedade Portuguesa de Matemática já veio dar conta dos estragos que estão a ser feitos: "SPM considera, o projeto de decreto-lei Currículo dos Ensinos Básico e Secundário, um passo atrás.
Em suma, a SPM não pode deixar de lamentar veementemente e de forma pública este intempestivo e progressivo desmantelamento dos pilares em que se apoia a Escola portuguesa e dos progressos tão duramente conquistados pelos nossos alunos e respetivas famílias e escolas – num processo que, se não cessar com brevidade, trará consequências que levarão décadas a corrigir." ( Rui Cardoso)
Não concordei com muitas medidas de Nuno Crato. Discordei, por exemplo, quanto à questão do eduquês, cliché que só serve para mistificar (o falhanço de pedagogias erradas, a desorganização de recursos humanos, mudanças sistemáticas nos currículos), discordei de Crato quanto à questão do construtivismo, quanto à questão de falta de relevo dada às artes, e ainda por insistir nas medidas erradas que vinham do governo anterior, como a avaliação de desempenho, a prova de acesso à carreira profissional...
Críticas mas também elogios mereceu essa política educativa e sobre o assunto escrevi, por exemplo, nestes textos:

O que não se esperava era que sob o manto diáfano da fantasia da "escola na sociedade de classes", a confusão se instalasse na 5 de Outubro, dando espaço ao apagamento do que de positivo tinha sido feito, já que na sede da fenprof e para a maioria conveniente da assembleia da república, não há confusão nenhuma, é tudo "muito simples e muito claro!", como diria António Guterres.