27/02/14

Ética, disciplina e escola


Em entrevista recente, Marçal Grilo, critica a situação actual da educação e lembra que na escola há três áreas fundamentais: os conhecimentos de base, os comportamentos e atitudes e a área dos valores. Nos valores, há imenso a fazer, se há algo que o país e o mundo perderam, foi a ética, parece varrida do comportamento das pessoas. 
De facto a escola também é comportamento, atitudes e valores. Estas são as condições básicas para que haja disciplina e, em consequência, beneficiar o currículo académico.
O que acontece é que encontramos turmas com elevados níveis de indisciplina onde ensinar é uma verdadeira acrobacia pedagógica.
Era de esperar que assim fosse quando se criou a escola inclusiva, obrigatória, primeiro até aos 14 anos e depois até aos 18 anos.
Estes aspectos do currículo são transversais a muitos países desenvolvidos e democráticos.
Também não é um problema actual. A questão da disciplina existe desde que existe escola. 

Mesmo assim, temos a ideia de que, actualmente, o problema parece mais extenso e mais profundo. É necessário analisar o problema de vários pontos de vista: dos alunos-indivíduos, do grupo-turma-sala de aula, da escola-organização e do próprio sistema educativo.
Há alunos com perturbação do comportamento e alunos desmotivados que são um peso no progresso das aprendizagens do grupo/turma.
É verdade que há turmas inteiras onde parece reinar a indisciplina:
- Alunos provocadores dos comportamentos de indisciplina, líderes negativos ou bodes expiatórios, são os actores principais,
- alunos que entram no jogo e colaboram de forma convicta ou por medo de sair do grupo, são os actores secundários,
- e outros alunos que pela sua passividade ou pelo cansaço de todos os dias assistirem a estes episódios, se desinteressam de ter qualquer intervenção, são a assistência.

Que fazer? O aluno é sancionado: repreendido, suspenso ou muda de escola. No entanto, estas medidas muitas vezes não têm resultados, pelo menos visíveis, e tudo continua na mesma.
Que mudança de comportamento podemos esperar de um aluno que durante toda a vida escolar vai ter sempre negativa a matemática ou português ?
Para além das medidas sancionatórias é necessário tomar medidas pedagógicas (os regulamentos internos prevêem algumas) e psicológicas como o treino comportamental e a remotivação.
Por outro lado, é necessário modificar o ambiente da sala de aula, os pares, condições físicas, as carteiras escolares, os meios pedagógicos... Seleccionar as actividades que mais interessam aos alunos, a possibilidade de exercerem as suas características positivas, as suas forças de assinatura (Seligman), em vez das negativas.
Obviamente que a família tem também que apoiar o esforço da escola e dos professores que se interessam.
Apesar de tudo o que pode parecer em sentido contrário, a escola continua a ser um dos lugares onde a ética não foi varrida do comportamento das pessoas.

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"O país não resiste a este pingue-pongue".

23/02/14

Assessorias de pacotilha




Circula na net, vemos e lemos na comunicação social, aquilo que por muitos é considerado um escândalo, onde mora a imoralidade e a iniquidade. Por si só, a contratação indiscriminada de assessores é discutível, quando nos dizem que há funcionários públicos a mais (há mesmo?) e serviços públicos a mais.
São as contratações via outsourcing para fazerem aquilo que os serviços já fazem, são as contratações individuais de gente inexperiente com vencimentos que nem de longe nem de perto se parecem com a 14ª posição remuneratória, praticamente inatingível ao fim de 40 anos de trabalho por qualquer funcionário público com boa classificação de serviço.
Isto é constitucional ? Não há nenhuma estrutura política ou sindical que possa pedir a sua constitucionalidade ? Não há? Mas isto tem um pingo de moralidade ? O princípio da equidade aqui também não interessa ? 

Os partidos do "arco do poder" não se podiam entender quanto ao número de contratações a fazer para assessorias e outras mordomias na função pública sempre que se verifique mudança do poder ?
Não se podiam entender quanto à remuneração máxima que em caso algum poderia ultrapassar a 14ª posição remuneratória da função pública?
Ou então, para escândalo de todos, criem uma tabela própria para essa gente e chamem-lhe outra coisa. Já todos estamos esclarecidos quanto ao funcionamento político das máquinas partidárias.

22/02/14

Qualificação e ensino profissional



O ME tem vindo a legislar sobre os Centros para a Qualificação e o Ensino Profissional (CQEP):
Portaria n.º 135-A/2013, de 28 de Março - Regula a criação e o regime de organização e funcionamento dos Centros para a Qualificação e o Ensino Profissional. (CQEP)


Despacho n.º 1709-A/2014,  de 03 de Fevereiro de 2014 - Determina a afectação de recursos humanos aos CQEP.

Esta legislação é importante. Mas há alguns aspectos em que podiam ser ouvidos os parceiros e/ou em que, pelo menos, se tivesse em conta a realidade. 
Claro que "sem prejuízo das horas necessárias à manutenção das suas atribuições"  e o perfil do "técnico de ORVC"  deixa margem para tudo o que se quiser.
Não querem saber, certamente, o que é o trabalho de um SPO nem querem saber o que é a orientação escolar e profissional.
O ME tem aqui mais duas oportunidades perdidas.

21/02/14

Atordoados


                               Entre mim e o dr. freud há um precalço
                               Ele acha que o que eu acho é tudo falso.
                               Entre mim e o entretanto é bem mais raro:
                               Ele pára para pensar mas eu não paro

19/02/14

Educar para o optimismo


Para o Financial Times, Portugal foi considerado o herói-surpresa da zona Euro. No entanto, os mais surpreendidos por esta notícia são os próprios portugueses.
O medo do sucesso é uma característica do comportamento de alguns portugueses e, principalmente, de algumas organizações políticas, sociais e sindicais. O que se tem passado, ultimamente, confirma esta posição.
Todos sabemos que temos vivido tempos muito difíceis. Mas com o esforço de todos começa a haver sinais positivos e parece que o pior terá passado.
A economia, as empresas, as exportações, os juros dos empréstimos têm melhorado. O desemprego deixou de subir, mesmo que à custa da sazonalidade, da emigração, etc…. Os subsistemas da saúde e de educação têm mantido os indicadores positivos que são conhecidos, embora se saiba que quando se atinge um nível muito bom é difícil superar esse nível.
Mas o mais estranho é que aquilo que devia ser motivo de sucesso é todos os dias denegrido, tomado com desconfiança, justificado com a Europa, com os outros, e não com a nossa capacidade para superar as dificuldades…
Na saúde, por exemplo, alguns hospitais encontravam-se em falência financeira em 2009… mas usam-se os números de forma distorcida: houve menos 40000 consultas, em 2013, mas o que não se diz é que isso foi num universo de 40 milhões de consultas. E também não se diz que, em 2009, houve menos 4 milhões de consultas.

O que aconteceu na nossa vida colectiva foi isto: vivemos na mentira do sucesso... A nossa auto-estima estava em alta:Euro 2004, tgv, ppp, polis, auto-estradas, "estado social", novas oportunidades, etc., etc.
Vivemos entre o falso sucesso e o pessimismo paralisante que não deixa reformar nem inovar. Perguntam “onde é que está a reforma do estado?”, quando se quer que tudo fique na mesma.
Vemos só o que queremos ver. E não queremos ver os casos de sucesso dos portugueses.
Temos falta de autoestima para nos reconhecermos nos nossos sucessos. Somos pessimistas, parece que há até quem goste de o ser, e, por isso, precisamos de ser educados para o optimismo confiante.

Prometa a si mesmo...
- Ser tão forte que nada pode perturbar a sua paz de espírito.
- Falar de saúde, felicidade e prosperidade a cada pessoa com que se cruzar.
- Fazer todos os seus alunos, filhos e colegas sintam que têm algo de especial.
- Olhar para o lado positivo de tudo e fazer o meu optimismo tornar-se realidade.
- Pensar somente o melhor, trabalhar apenas para o melhor e esperar apenas o melhor.
- Ser tão entusiasmado com o sucesso dos outros como com o seu próprio sucesso.
- Esquecer os erros do passado e concentrar-me apenas nas realizações positivas do futuro.
- Usar uma expressão de alegria em todos os momentos e dar aos seres humanos com que se cruza um sorriso.
- Dar tanto tempo para melhorar a si mesmo que não tem tempo para criticar os outros.
- Ser tão forte que não se preocupe, tão nobre que não se descontrole, tão resistente que não tenha ansiedade, e tão feliz que não desfaleça face às adversidades. *


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*Christian D. Larson, 1912. Adoptado pela Optimist International.

16/02/14

A escola não é só isto

Pela primeira vez, não podia concordar mais com a visão de Marçal Grilo sobre a escola e o ministério de educação. Sem críticas sem sentido, choradinhos sobre a escola, pessimismo paralisante mas realista sobre uma escola que está a cumprir o seu papel.
Não sei se a pergunta "a maioria não sabe contar, escreve mal, lê mal..." não é uma fácil generalização...
É que conheço tantos alunos extraordinários!
Aqui fica um extracto.
...
Nuno Crato não toca no essencial?
Conheço-o bem, sou seu amigo pessoal, mas julgo que tem feito uma gestão que incide muito, ou que atende mais, a aspectos relacionados com o curriculum, o conteúdo das disciplinas, e que há outros aspectos que não estão a ser acautelados.

Quais?
A criatividade, a iniciativa, a responsabilidade, a atitude...

O que é a “criatividade” neste caso?
Pôr os alunos a fazer coisas novas e a tomar iniciativas por si só.

... mas se a maioria não sabe contar, escreve mal, lê mal, fala mal, como falar de criatividade até isso estar resolvido?
... obviamente que não ponho em causa a importância excepcional do Português, da Matemática, da História, da Geografia. Mas lembro que na escola há três áreas fundamentais: os conhecimentos de base, os comportamentos e atitudes e a área dos valores. Nos valores, há imenso a fazer, se há algo que o país e o mundo perderam, foi a ética, parece varrida do comportamento das pessoas. Em Portugal, há hoje uma ideia de que o que é legal é ético, quando há coisas que sendo legais não são éticas! Não são legítimas, ponto! Não se devem fazer, mesmo sendo legais. Longe de mim desprezar os conhecimentos de base, já falei do grande orgulho na minha formação de engenheiro, com Matemática, Física, Química, estruturas, resistência dos materiais, etc. Sucede porém que a escola não é só isto. E é aqui que eu penso que o ministro não tem sabido mobilizar os professores, os alunos e os pais para a ideia de que há mais vida para além do que se estuda nos livros para responder nos exames e satisfazer os testes internacionais.

Ninguém achará que é só isso... Mas olhando à roda, com as honrosas excepções que sempre há, nem a grande plateia dos alunos nem o palco dos professores parecem dispostos à “criatividade”.
Repito: é tão importante o aluno saber ler, escrever e exprimir-se; possuir um raciocínio matemático e conhecer a História e a Geografia, como quanto o é a área comportamental — isto é, a forma como cada um age, olha para o mundo, lida com os outros, com as coisas, com os problemas. Hoje, numa empresa, o que mais conta é a capacidade de inovar, de ter iniciativa e conviver com a mudança! De ser capaz de ser um elemento catalisador, da criação de novos produtos, da alteração dos processos de fabrico, da redução de custos ou da racionalização de qualquer outro processo. Se olharmos para esta crise, o que é que verdadeiramente impressiona? A enorme capacidade que os empresários, os gestores, os pequenos empresários têm tido! Além da imaginação, a determinação e a força para impor determinadas coisas, muitas vezes contra a vontade de tanta gente nas próprias empresas. Será a eles, sem dúvida, que ficaremos a dever o que poderá ser a saída desta crise.
....

15/02/14

Ontem, hoje, quando um homem quiser




Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer; É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Camões


12/02/14

Kruel ou a magia de aprender a ler


A aprendizagem da leitura e escrita é a base fundamental do currículo dos primeiros anos de escolaridade. 
Tudo vai bem quando o aluno entra facilmente neste processo. E a maioria das crianças aprende a leitura e escrita sem grandes sobressaltos.
Mas para algumas crianças e famílias, aprender a ler e escrever é um problema muito perturbador, no início da escolaridade. E é aqui que começa a grande dificuldade da escola.
A esperança dos pais de que tudo vai correr bem, na escola, com o seu filho transforma-se, rapidamente, em desespero e numa verdadeira fonte de perturbação e conflito da vida familiar.
Este é também o problema com que se deparam muitos professores mesmo aqueles que, com longa experiência profissional e sabedoria, não conseguem que esses alunos entrem minimamente neste processo de aprendizagem.
Por isso, ao longo do tempo, têm surgido vários métodos de aprendizagem da leitura e escrita. 

Decroly foi um dos iniciadores do método global. Iniciou este método porque todos os outros falhavam. Ele próprio, indisciplinado, teve dificuldades na escola e propôs uma nova concepção de ensino.
O método João de Deus, também em reacção ao método tradicional, "segue uma via completamente original, quando apresenta as dificuldades da língua de uma forma gradual, numa progressão pedagógica que constitui um verdadeiro estudo da língua portuguesa."
Alguns professores, não satisfeitos com os métodos existentes, criaram eles próprios métodos novos com o objectivo de fazer com que todas as crianças pudessem aprender a ler.


Yolanda Betim Paes Leme de Kruel, criou o método das 28 palavras. Essas palavras são apresentadas às crianças através de uma história que se irá contando ao longo do ano. É uma história que termina como um poema de Walt Whitman: «tudo o que a menina viu, nela se tornou». (Também aqui)

Entre nós, a versão actual de Camila Santos, Conceição Liquito, Rosalina Veiga, chama-se "Caixinha de Palavras"  que "é uma caixinha mágica, pois com ela aprendemos a ler e escrever, o que é uma verdadeira magia."
O método das 28 palavras "ajuda a descobrir a leitura e a escrita usando 28 palavras-chave divididas em sílabas que se poderão combinar com o objectivo de descobrir novas palavras. É um método que funciona por descoberta, ou seja, a criança aprende descobrindo!"
O método das 28 palavras "é um método analítico, partindo do todo para o particular. Parte da palavra, considerada como um todo (pelo menos nas primeiras 4 palavras), sem descer à análise dos seus elementos."
"Aparece, então, a sua decomposição até que sejam perfeitamente reconhecidas as sílabas que compõem as palavras-chave. Com essas sílabas, novas palavras se formarão."

Aquilo que parece fazer discordar os defensores exclusivistas do método sintético  é dizer "que a aprendizagem se faz por descoberta." Mas dizer que há descoberta na aprendizagem não passa de um truísmo porque há sempre um momento de descoberta na aprendizagem em que o aluno acomoda a assimilação de um elemento novo (Piaget)
Não significa isto que se dispense o ensino e o trabalho do professor ou do educador, pelo contrário, como sabemos da “teoria da instrução” de Bruner. Mas apenas não se pode esquecer que "aprender é sempre um trabalho de autor." (Bruner) 
Creio que qualquer método pode ser eficaz para um determinado aluno se com ele o aluno aprende a ler e a escrever.

Não vou alimentar a discórdia  que existe sobre os métodos. O que sei é que é necessário procurar o método eficaz para o aluno aprender, seja o método a,  b , c, sintético, global ou de ponto de partida...
Até porque me parece um falso debate. De facto, J. Chall, num estudo exaustivo, mostrou que os métodos chegam aos mesmos resultados, concluindo que de uma maneira geral, os resultados não diferem muito quando são usados diferentes métodos para o ensino da leitura. (referido por F. Sequeira, in Maturidade linguística e aprendizagem da leitura, Braga, Universidade do Minho, 1989, pag. 70).
A “guerra” entre métodos globais e silábicos parece ter sido importante em França. F. L. Viana coloca a questão nos seus devidos termos, de forma interessante e desapaixonada, em Aprender a ler: apenas uma questão de métodos?

Quando deparamos com alunos que devido às suas diferenças, dificuldades de aprendizagem, dificuldades específicas de aprendizagem ou outra tipologia de necessidades educativas especiais, não aprende a ler, provavelmente, temos que mudar de método.
Nas equipas de trabalho de que faço parte, o método das 28 palavras tem sido utilizado com alguns alunos por professores experientes.
Têm tido sucesso em relação a alunos que manifestam muitas dificuldades na aprendizagem da leitura e escrita pelo método tradicional. E esse é um dado evidente: não aprendem como as outras crianças, mas a mudança de método tem tido resultados, em alguns casos, espectaculares. De repente, os alunos começam a ler.
Mas os benefícios são muito mais vastos: a criança sente-se capaz de aprender como as outras crianças. As letras e as palavras começam a fazer sentido. A escola começa a ser vista de outro modo. Deixa de ser um local de grande sofrimento, de medo, de frustração, que leva a problemas de autoestima, em alguns casos de desinteresse pelas actividades e mesmo pela escola.
Kruel não é cruel. Insensibilidade será assistir  às dificuldades da criança sem nada fazer e deixar que ao fim de seis meses, ao fim do ano, ela continue no i de igreja ou de ilha, que irá repetir no ano seguinte...  

09/02/14

Mais rápido que a própria sombra

 lucky_luke.jpg

Antes que a reorganização judiciária se iniciasse já tinha sido anunciada uma contra-reforma.
O novo mapa judicial ainda não saiu do prelo e já sabemos que com o seu governo todos os tribunais que fecharem serão reabertos.

07/02/14

Ostentação, austeridade e a costumada canga


"A vocação ostentatória e boémia da nova classe política, militar e civil, passa as raias do entendimento e só em termos freudianos pode ser compreendida. Nos tempos oficialmente económicos do mal falecido fascismo, o regime organizava em permanência sumptuosos banquetes publicitários (centenários, congressos, celebrações de tudo, canonizações de obscuros bispos de séculos em que Portugal não existia) destinados a comprar as consciências mais delicadas da democracia ocidental. Os que assistiam a esses ágapes podiam lembrar-se deles e evocá-los com trémulos na voz passados quinze anos, e os que os davam, convertê-los em efemérides glosadas em tom épico nas colunas do Diário de Notícias, do Século ou do Diário da Manhã. A eterna ingenuidade dos profissionais dela podiam imaginar que no dia em que esse regime do privilégio insolente e do arbítrio puro desaparecesse, essa escandalosa exibição para Europa ver cederia o lugar a uma democrática, austera aplicação dos dinheiros públicos. Engano puro: ninguém ousa apresentar a conta dos inumeráveis gastos de tipo sumptuário e exibicionista que os novos ricos da política nacional acharam por bem efectuar. Se a título individual a nossa mentalidade de ricos nos obriga a contorções caras, mas com juros à vista, a título oficial, a mesma mentalidade opera sem entraves e a responsabilidade dissolve-se ao abrigo da vaga rubrica dos «interesses superiores do Estado». A primeira República nascera austera, como o muito democrático comportamento de Teófilo o ilustrou. A segunda, que se quer revolucionária e socialista, nasceu ávida e esbanjadora como se o famoso «tesouro» do fascismo fosse herança pessoal da nova classe dirigente e não precário e precioso bem público. A austeridade  pode ser um álibi, mas a falta dela não é prova de revolucionarismo. A demagogia política e o reflexo estrutural que nos caracteriza combinaram-se para produzir o fenómeno pasmoso de alimentarmos a máquina económica com o dinheiro dos outros, gasto alegremente como se fosse nosso. Mas é escusado pensar que a metamorfose da maravilhosa revolução dos cravos em degradado banquete dos «cravas», para o etiquetar com a vulgaridade que merece, se deva nominal e grupalmente a alguém. É uma culpa anónima, uma maquinação de poderes obscuros, uma «pouca sorte» que nada tem a ver com a mentalidade colectiva tantas e tantas vezes ilustrada. Culpados não existem, e sobretudo entre quem parecia lógico que o fosse. Todavia alguém terá de pagar, cedo ou tarde, o preço que a aparência exige para ter um mínimo de realidade. Esse alguém é bem conhecido: chama-se  povo, o povo que efectivamente trabalha e para quem, como escrevia Goethe, a maioria das revoluções que se fazem em seu nome não significam mais que a possibilidade de mudar de ombro para suportar a costumada canga."

Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Publicações dom QuixoteLisboa,1978, pags. 147-148.

05/02/14

Sofrimento profissional e pessoal


Gnarls Barkley,  "Crazy"

O reverso da medalha da satisfação no trabalho é muitas vezes o sofrimento no trabalho. O trabalho é fonte de problemas para a saúde e saúde mental.
Maria Velho da Costa escreveu "português, trabalhador, doente mental" onde refere esta situação muito bem. 
São relatos de trabalhadores que sentiram, nas suas vidas, essa doença, "os ataques" que dão à gente e que vêm de dentro de nós, na sequência de outros ataques, externos, mesmo quando temos uma bazuca para nos protegermos (1º caso); As causas da doença são externas, vêm do próprio trabalho mas também internas e não sabemos qual tem mais relevo no desencadear do sofrimento. 

As organizações consideram que estes problemas como os suicídios dos seus funcionários têm a ver com a vida privada e não com o trabalho.  Para C. Dejours , “Toda a gente tem problemas pessoais. Portanto, quando alguém diz que uma pessoa se suicidou por razões pessoais, não está totalmente errado. Se procurarmos bem, vamos acabar por encontrar, na maioria dos casos, sinais precursores, sinais de fragilidade. Há quem já tenha estado doente, há quem tenha tido episódios depressivos no passado. É preciso fazer uma investigação muito aprofundada. 
Mas se a empresa pretender provar que a crise depressiva de uma pessoa se deve a problemas pessoais, vai ter de explicar por que é que, durante 10, 15, 20 anos, essa pessoa, apesar das suas fragilidades, funcionou bem no trabalho e não adoeceu. 

Na população, um dos maiores problemas de saúde é a depressão. A depressão é a segunda causa de doença nos Estados Unidos e é a maior causa de incapacidade do mundo. 
Punset (El viaje a la felicidad) refere que "em poucos anos constataremos o enorme custo social em que teremos caído ao não abordar seriamente o problema da saúde mental".  “A tristeza maligna, a depressão, é possivelmente o (factor) mais destrutivo e o menos controlado de todos os actores que germinam dentro da própria pessoa.” 

Em geral, não temos dado atenção aos problemas de saúde mental nas diversas instituições, escolas, empresas...
Sabemos que é fundamental para o ser humano que haja reconhecimento do seu trabalho, sinta importância de ser útil e integrado no grupo de pertença. 
Em vez disso, a cultura organizacional vai desaparecendo com a precariedade e com a atitude de que tudo é descartável, tudo pode ser substituído a todo o momento. 
Mas mesmo em empregos mais estáveis é o próprio (dis)funcionamento das equipas, hierarquias, interacções e lideranças que cria a instabilidade e o sofrimento. 

Não ter trabalho é o pior de tudo mas ter trabalho continua a ser para algumas pessoas fonte de infelicidade. O trabalho é um dos mitos da felicidade (Punset). Principalmente quando esse trabalho é rotineiro, burocrático, com deslocações, com baixo salário, sem equipa e cada um por si...
O alerta feito por M. V. da Costa, há tantos anos, mantém a actualidade: "… a restauração do país não passa só pelo trabalho dos que mais trabalham, pela reestruturação das estruturas dos mesmos poderes " mas "que a arte, instrumento de averiguação e denúncia outra, transgressora da disciplina "normal" de perceber o real, a arte, também." (pag.166) 
A arte e a ciência dizem que a restauração do país passa pelo equilíbrio mental dos seus cidadãos e pela necessidade de reconhecimento do valor dos seus trabalhadores.

03/02/14

Satisfação profissional e pessoal


A orientação escolar e profissional tem em conta o ajustamento do perfil profissional ao perfil de personalidade da pessoa. 
Desde Frank Parsons (Choosing a vocation), a orientação consiste, assim, em compreender a natureza do trabalho, as condições do emprego e do trabalho, a formação necessária, a evolução na carreira, as remunerações e a perspectiva de futuro dessa profissão.
Falar de vocação 1 parece ser ainda mais complexo porque isso depende de muitos outros factores que se conseguem avaliar quando já estamos metidos numa actividade. Ou seja, a satisfação profissional e pessoal implica que se tenha uma profissão em que o peso dos factores externos é importante mas ainda mais o peso dos factores intrínsecos.
Nos países mais desenvolvidos há muita coisa que mudou e continua a mudar, uma delas o valor do dinheiro. O trabalho significativo é tão importante como o salário e a segurança.
Para Seligman “a nossa economia está a mudar rapidamente da economia financeira para a economia da satisfação.” (Felicidade autêntica, pag. 209)
De facto, procuramos cada vez mais a satisfação profissional e pessoal  e sabemos responder às perguntas: Para que é que eu trabalho ? Qual o significado que tem o meu trabalho ?

A investigação sobre este assunto tem proposto várias orientações para a visão do trabalho: como uma profissão, como uma carreira e como uma vocação.
Amy Wrzesniewski (2003) descreve estas três orientações diferentes de trabalho que afectam a disposição para encontrar significado no trabalho.
O trabalho enquanto fonte de benefícios materiais que permitem fazer outras coisas na vida. A maior satisfação vem de hobbies e relacionamentos fora do trabalho. O significado do trabalho é principalmente o que pode contribuir para as actividades fora da vida do trabalho.
Visto como carreira, o trabalho é fonte de progresso, prestígio e status. As pessoas com uma carreira são capazes muitas vezes de fazer sacrifícios para o avanço do trabalho que os outros não fariam.
A vocação (chamamento) permite ver o trabalho como crença de que ele contribui para um bem maior. Mesmo os trabalhos mais simples e rotineiros podem ser vistos como tendo um significado importante. As pessoas com esta orientação tendem a experimentar mais significado do trabalho.

Algumas pessoas orientam-se mais para a primeira etapa e trabalham para ganhar dinheiro que lhes pode, por ex.,  proporcionar umas boas férias. Distinguimos até trabalho de emprego sendo que algumas pessoas "não lhes apetece trabalhar por motivos profissionais", como aqui.
Quanto à carreira, ela é importante para a satisfação profissional mas tem vindo a acontecer, como na função pública, que as carreiras são mais fictícias do que reais. São carreiras onde dificilmente se consegue mudar de categoria e onde é quase impossível chegar ao topo da carreira devido aos congelamentos e à avaliação de desempenho individual e que na realidade não avalia nada. 2
Finalmente, alguns conseguem atingir o nível do trabalho como vocação. É de facto um sentimento extraordinário. Trabalhar porque sentimos que estamos a contribuir para o bem estar da sociedade, as horas não contam porque não damos por que elas passem, sentimos prazer em trabalhar com os colegas e que trabalhamos para os outros. Desta forma o trabalho faz-nos melhores pessoas e sentimo-nos mais saudáveis.3
“Reestruturar o emprego para poder empregar as forças e virtudes todos os dias não só torna o trabalho mais agradável, como também metamorfoseia um trabalho rotineiro ou uma carreira estagnada numa vocação. Uma vocação é a forma mais satisfatória de trabalho pelas gratificações que lhe são inerentes e não pelos benefícios materiais que traz.” (pag.210) 4

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1 "Diz-se que há vocação quando uma pessoa manifesta tendência a exercer certa forma de atividade - em particular, de caráter profissional - e suficientemente forte, para que pareça responder a uma espécie de apelo (ou chamado interior), de acordo com as aptidões requeridas nessa actividade." (Dicionário de Psicologia, Henri Piéron, Editora Globo, 1977).

2 Excepto, talvez, para enquadrar o salário dos assessores políticos que começam a sua vida profissional pelo topo da carreira ou quase, sendo remunerados acima dos assessores profissionais, com mais de 40 anos de serviço.

3 Nesta etapa da vocação  podemos trabalhar como se não houvesse  governo ou oposição, ministério da educação ou fenprof, actuais ou de sempre.

4 Estamos no campo da motivação intrínseca, realização profissional, fluxo.