07/02/14

Ostentação, austeridade e a costumada canga


"A vocação ostentatória e boémia da nova classe política, militar e civil, passa as raias do entendimento e só em termos freudianos pode ser compreendida. Nos tempos oficialmente económicos do mal falecido fascismo, o regime organizava em permanência sumptuosos banquetes publicitários (centenários, congressos, celebrações de tudo, canonizações de obscuros bispos de séculos em que Portugal não existia) destinados a comprar as consciências mais delicadas da democracia ocidental. Os que assistiam a esses ágapes podiam lembrar-se deles e evocá-los com trémulos na voz passados quinze anos, e os que os davam, convertê-los em efemérides glosadas em tom épico nas colunas do Diário de Notícias, do Século ou do Diário da Manhã. A eterna ingenuidade dos profissionais dela podiam imaginar que no dia em que esse regime do privilégio insolente e do arbítrio puro desaparecesse, essa escandalosa exibição para Europa ver cederia o lugar a uma democrática, austera aplicação dos dinheiros públicos. Engano puro: ninguém ousa apresentar a conta dos inumeráveis gastos de tipo sumptuário e exibicionista que os novos ricos da política nacional acharam por bem efectuar. Se a título individual a nossa mentalidade de ricos nos obriga a contorções caras, mas com juros à vista, a título oficial, a mesma mentalidade opera sem entraves e a responsabilidade dissolve-se ao abrigo da vaga rubrica dos «interesses superiores do Estado». A primeira República nascera austera, como o muito democrático comportamento de Teófilo o ilustrou. A segunda, que se quer revolucionária e socialista, nasceu ávida e esbanjadora como se o famoso «tesouro» do fascismo fosse herança pessoal da nova classe dirigente e não precário e precioso bem público. A austeridade  pode ser um álibi, mas a falta dela não é prova de revolucionarismo. A demagogia política e o reflexo estrutural que nos caracteriza combinaram-se para produzir o fenómeno pasmoso de alimentarmos a máquina económica com o dinheiro dos outros, gasto alegremente como se fosse nosso. Mas é escusado pensar que a metamorfose da maravilhosa revolução dos cravos em degradado banquete dos «cravas», para o etiquetar com a vulgaridade que merece, se deva nominal e grupalmente a alguém. É uma culpa anónima, uma maquinação de poderes obscuros, uma «pouca sorte» que nada tem a ver com a mentalidade colectiva tantas e tantas vezes ilustrada. Culpados não existem, e sobretudo entre quem parecia lógico que o fosse. Todavia alguém terá de pagar, cedo ou tarde, o preço que a aparência exige para ter um mínimo de realidade. Esse alguém é bem conhecido: chama-se  povo, o povo que efectivamente trabalha e para quem, como escrevia Goethe, a maioria das revoluções que se fazem em seu nome não significam mais que a possibilidade de mudar de ombro para suportar a costumada canga."

Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Publicações dom QuixoteLisboa,1978, pags. 147-148.

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