10/08/17

Confiança básica

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"Olha-me. Nunca me irei embora; mesmo quando já cá não estiver, basta-te abrir pernas e braços, pôr o peito para cima e fechar os olhos, dessa vez fecha os olhos, para me veres onde estou: aí dentro. Quando essa cabeça quiser pensar em nada, que serei eu dentro de ti, fecha os olhos. Nós os dois aqui, um ao lado do outro, a boiar no mar calmo de olhos postos no céu imenso.

A extraordinária relação pai-filho que nasce nas pequenas coisas da vida, da aprendizagem do quotidiano, da confiança básica (E. Erikson), do amor profundo entre dois seres. Muito gratificante. 
Obrigado AAA. 
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09/08/17

Vinho, mulheres e canções


Valsa "vinho, mulheres e canções"
Orquestra Sinfónica da Rádio de Hamburgo - Dir. de Gudolff Rendel

Talvez aqui.
 


O título da valsa de Johan Strauss só por si, e para os dias que vão correndo, é um tratado do politicamente incorrecto, talvez, até um insulto, para os fracturantes de pacotilha.
É muito mais do que versar sobre a vida desregrada, a que Jeroen Dijsselbloem se referia, como o caminho a evitar, é o encantamento da vida - o principio do prazer.
Embora Dijsselbloem seja do norte disse o que se pode aplicar a todos os povos de todas as geografias, como a ele próprio.  O azar dele foi tê-lo feito de forma focada nos europeus do sul quando isso também é coisa dos europeus do norte, como aqui se vê.
Também já não era o tempo próprio para isso. Quer dizer, foi aqui que nos trouxe o retrocesso em que estamos.

Por estes dias de embandeirar em arco, aliás o nosso querido presidente Marcelo já começou a travar (Acabou a lua-de-mel entre Marcelo e Costa) tanta exuberância, principalmente depois das desgraças dos incêndios e de  Tancos, o país que todos procuram pelo sol, pela comida, pela simpatia das pessoas, afinal também tem defeitos. Nada que surpreenda o que refere, no Labirinto da saudade, Eduardo Lourenço: "somos um povo de pobres com mentalidade de ricos". Como as críticas são "de casa", podem dizer o que pensam e o que entendem sobre  a choldra ignóbil, apropriada ao "estado a que chegámos".
Mas não fomos sempre assim ? Podemos voltar ao passado, por altura dos descobrimentos, quando se criticava aqueles que comiam pão-de-ló com sardinha  assada. Mas isso eram outros tempos?

Resta-nos a verdadeira paixão pela música, autêntica evolução no campo da igualdade de direitos. 
Como referia E. Cintra Torres a propósito de "Duetos imprevistos".  "A arte aprende-se. Os compositores, diz-nos Duetos, não são apenas homens do seu tempo: têm as paixões do momento e de sempre. Tal como eles, os dois apresentadores estão sempre à mesa comendo e bebendo (como Bruckner), falando das apaixonadas e do seu papel na música (Liszt, o Strauss das valsas), e procurando também assim recriar o seu amor pela música, religiosa, popular ou o que seja. No écrã, recriam-se pulsões dos compositores: vinho, mulheres e canções (Wein, Weib und Gesang: é o título de uma valsa de Strauss)."

04/08/17

Todo o Mundo e Ninguém

 

Todo o Mundo e Ninguém, entremez do Auto da Lusitânia, escrito por Gil Vicente em  1531, e representado pela primeira vez em 1532, está mais actual do que nunca, não só pela estória da utilização da música dos 1111 num dos temas do álbum “4:44”, de Jay-Z, mas porque, passados 500 anos, podia ter sido escrito um dia destes, se ainda houvesse homens como Gil Vicente.

Nesse sentido interroga-se A. Barreto: "Que é feito dos homens livres do meu país? Estão assim tão dependentes da simpatia partidária, dos empregos públicos, das notícias administradas gota a gota, dos financiamentos, dos subsídios, das bolsas de estudo e das autorizações que preferem calar-se? Que é feito dos autarcas livres do meu país? Onde estarão eles no dia e na hora do desastre? Talvez à porta do partido quando as populações pedirem socorro e conforto." (A. Barreto, Jacarandá)

Gil Vicente conhecia bem os vícios do seu tempo. Dinato e Belzebu, encarregues de relatar a Lúcifer tudo o que se passa (ver Auto da Lusitânia), escutam o diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém.
Um rico mercador, chamado "Todo o Mundo" e um homem pobre cujo nome é "Ninguém", encontram-se e põem-se a conversar sobre o que desejam neste mundo. Em torno desta conversa, dois demónios (Belzebu e Dinato) tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens.

Ninguém:
Que andas tu aí buscando

Todo o Mundo:
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.

Ninguém:
como hás o nome, cavaleiro?

Todo o Mundo.:
Eu hei nome Todo o Mundo,
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro,
e sempre nisto me fundo.

Ninguém:
Eu hei Ninguém,
e busco a consciência.

Belzebu:
Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.

Dinato:
Que escreverei, companheiro?

Belzebu:
Que Ninguém busca consciência,
e Todo o Mundo dinheiro.
...