Todo o Mundo e Ninguém, entremez do Auto da Lusitânia, escrito por Gil Vicente em 1531, e representado pela primeira vez em 1532, está mais actual do que nunca, não só pela estória da utilização da música dos 1111 num dos temas do álbum “4:44”, de Jay-Z, mas porque, passados 500 anos, podia ter sido escrito um dia destes, se ainda houvesse homens como Gil Vicente.
Nesse sentido interroga-se A. Barreto: "Que é feito dos homens livres do meu país? Estão assim tão dependentes da simpatia partidária, dos empregos públicos, das notícias administradas gota a gota, dos financiamentos, dos subsídios, das bolsas de estudo e das autorizações que preferem calar-se? Que é feito dos autarcas livres do meu país? Onde estarão eles no dia e na hora do desastre? Talvez à porta do partido quando as populações pedirem socorro e conforto." (A. Barreto, Jacarandá)
Gil Vicente conhecia bem os vícios do seu tempo. Dinato e Belzebu, encarregues de relatar a Lúcifer tudo o que se passa (ver Auto da Lusitânia), escutam o diálogo entre Todo o Mundo e Ninguém.
Um rico mercador, chamado "Todo o Mundo" e um homem pobre cujo nome é "Ninguém", encontram-se e põem-se a conversar sobre o que desejam neste mundo. Em torno desta conversa, dois demónios (Belzebu e Dinato) tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens.
Que andas tu aí buscando
Todo o Mundo:
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.
Ninguém:
como hás o nome, cavaleiro?
Todo o Mundo.:
Eu hei nome Todo o Mundo,
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro,
e sempre nisto me fundo.
Ninguém:
Eu hei Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu:
Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato:
Que escreverei, companheiro?
Belzebu:
Que Ninguém busca consciência,
e Todo o Mundo dinheiro.
...
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