31/10/20

Poema para este tempo - a vida é uma ordem

Sisifo, de Tiziano Vecellio, 1548-1549.



Os Ombros Suportam o Mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco. 
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos. 
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

 

Carlos Drummond de Andrade (31/10/1902 — 17/8/1987) 



Douce France


  
Oui je t'aime
Et je te donne ce poème
Oui je t'aime
Dans la joie ou la douleur
 


(Nice, outra vez... )

28/10/20

Amizade social e psicologia


No mesmo mês em que o papa Francisco apela à amizade social e fraternidade ("Fratelli tutti"), ficamos chocados com acontecimentos terríveis que vão em sentido contrário, como o assassinato de um professor em França, Samuel Paty, e a vandalização e incêndio de duas igrejas no Chile.
Porquê este ódio, porquê estes comportamentos violentos?

Na semana passada analisámos o primeiro capítulo da encíclica do Papa Francisco "Fratelli tutti" onde são referidas algumas variáveis que contribuem para o falhanço de um mundo fechado.

A psicologia social esclarece-nos sobre a importância das relaçoes de pertença para a inclusão de cada um de nós numa família e numa comunidade. Muitas pessoas e em particular os jovens são o alvo de controle através da “cultura” da tábua rasa, como já escrevia Gilles Lipovetsky no livro " A era do vazio”. (*)

A desconstrução histórica e cultural (13), deixa de lado uma história humana com os erros e os acertos que foram cometidos, e faz a (re)construção da história com os critérios da actualidade e da forma que dá jeito interpretar.
Fala-nos também das formas de destruir a personalidade das pessoas que passa pela destruição da auto-estima (51)
Critica o slogan liberdade igualdade e fraternidade (103) porque a liberdade e a igualdade sem fraternidade é ilusória, é mero egoísmo, a liberdade de fazer o que me apetece, a igualdade de “sócios” que cria um mundo fechado.
Explica quem é o outro (56 e seg.) e quem é o próximo (80): não é apenas o que me é próximo ou familiar mas aquele que é diferente de mim e pode ter limitações na sua eficiência.

Voltamos à questão: o inferno são os outros ou o inferno somos nós ? Há, então, que compreender por que continuamos num mundo fechado, de emoções destrutivas.
Na psicologia encontramos alguma explicação possível para este esses tipos de personalidade.
Para “Freud a figura do irmão é sempre a de um rival, um intruso no drama edípico, com quem é necessário compartilhar o amor dos pais (Freud, 1917/1988). O sentimento de fraternidade, assim, só pode emergir como efeito secundário, a partir de uma rivalidade originária entre irmãos." (**)

A violência contra os outros e contra si próprio, como o suicídio, como se explica ? O eu está em conflito permanente consigo próprio. As diversas estruturas do eu, conscientes e inconscientes, ou (na 2ª tópica) o id, ego, superego conflituam entre si.
Por outro lado, o psicanalista Wilfred Bion destacou três vínculos fundamentais no ser humano: Amor, Ódio e Conhecimento. São inseparáveis e interagem entre si – de modo que, conforme a predominância da qualidade dos vínculos – se sadia ou patológica – são determinados o nosso comportamento e a nossa qualidade de vida. (***)

O mundo aberto (87 e seg.) é o mundo da criação de vínculos saudáveis, de emoções construtivas: o amor, a bondade e o perdão, a solidariedade, o acolhimento do outro, o prazer de reconhecer o outro, a amabilidade, a superação, a ternura...
O que fazer para caminharmos para um mundo cada vez mais aberto ? 
Francisco fala-nos do caminho, do método para conseguirmos este objectivo: o diálogo, a cultura, a verdade, o perdão e a memória, a proactividade, a negociação, o conhecimento mútuo...



Até para a semana.

________________________
(*) Gilles Lipovetsky, Era do Vazio, A: Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo (1988)

24/10/20

Hoje é dia de ouvir A. Scarlatti na voz de Cecilia Bartoli

"Son tutta duolo"- Alessandro Scarlatti (2/5/1660 — 24/10/1725)
Cecilia Bartoli - mezzo-soprano
György Fischer - piano

 

Talvez aqui


Son tutta duolo, non ho che affanni
E mi dà morte pena crudel:
E per me solo sono tiranni gli astri,
La sorte, i numi, il ciel.

Estou toda triste, não tenho senão preocupações
E isso me dá uma dor cruel:
E só para mim são tiranas as estrelas,
O destino, os deuses, o céu.

14/10/20

Amizade social


A
nova encíclica do papa Francisco, Fratelli Tutti» trata de “uma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas, independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita.”
Inspirado pelos ensinamentos de S. Francisco dedica “esta nova encíclica à fraternidade e à amizade social.”

O papa refere “esta encíclica como humilde contribuição para a reflexão, sobre as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, e por outro lado sobre um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras."

Francisco passa em revista algumas das várias formas de eliminar ou ignorar os outros.  Nesta análise, Francisco faz notar a contradição entre as palavras que se apregoam e a realidade 
Vou referir, resumidamente, alguns dos pontos dessa análise.

- Num tempo de abertura ao mundo o que acontece é que voltam com toda a força “As sombras dum mundo fechado“.
“ A história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. “
Queremos a economia e as finanças abertas ao mundo. Porém, este “globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes em desfavor dos mais frágeis e pobres...

- Assistimos a “uma perda do sentido da história que desagrega ainda mais. Nota-se a penetração cultural duma espécie de «desconstrucionismo», em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero. De pé, deixa apenas a necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas formas de individualismo sem conteúdo." 
Proíbem-se livros, vandalizam-se monumentos, reescreve-se a história... É preciso fazer tábua rasa do passado. A manipulação dos espíritos necessita de jovens “vazios”... 

- O descarte mundial. «As pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem” (como os nascituros) ou “já não servem” (como os idosos).“
Formas de descarte são também o desemprego, o racismo, a escravatura...

- Vivemos com o conflito e o medo. As situações de violência – guerras, atentados, perseguições - vão-se «multiplicando cruelmente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir os contornos daquela que se poderia chamar uma “terceira guerra mundial aos pedaços”».

- Em relação à pandemia, diz Francisco: “rapidamente esquecemos as lições da história, «mestra da vida». Passada a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e em novas formas de autoproteção egoísta.” O que já está a acontecer...

- Por fim, talvez o mais paradoxal de todos os motivos desta falta de amizade social seja a “ilusão da comunicação “.
Diz Francisco: “Nos media, tudo se torna uma espécie de espetáculo que pode ser espiado, observado, e a vida acaba exposta a um controle constante. Na comunicação digital, quer-se mostrar tudo, e cada indivíduo torna-se objeto de olhares que esquadrinham, desnudam e divulgam, muitas vezes anonimamente. Dilui-se o respeito pelo outro e, assim, ao mesmo tempo que o apago, ignoro e mantenho afastado, posso despudoradamente invadir até ao mais recôndito da sua vida. “


Até para a semana.






 


07/10/20

A escola cultural


Em 2018, foi criada, no currículo escolar, a área de "cidadania e desenvolvimento". É uma manta de retalhos em que são tratados temas como: Educação para a Saúde, Educação para a Segurança, a Defesa e a Paz; Educação para o Desenvolvimento; Educação para o Risco; Educação para os Media; Educação Rodoviária; Dimensão Europeia; Educação do Consumidor...
Perante este albergue curricular em que vive a educação talvez valha a pena voltar a reflectir sobre o debate que aconteceu com a reforma curricular de 89.

Como actualmente, nessa altura, estavam em confronto duas ideias de escola. Uma dessas ideias de escola é a chamada “escola cultural”.
Segundo Ramiro Marques “... o modelo da escola cultural é fortemente personalista e pedocêntrico. Dá a primazia à pessoa face ao grupo, ao aluno face ao professor, à aprendizagem face ao ensino, à individualidade da pessoa humana face à sociedade e à cultura face à economia ... “
“ ... A escola não tem como finalidade principal produzir cidadãos produtores e tão pouco cidadãos consumidores. A finalidade principal da escola é a transmissão do legado cultural às novas gerações, apetrechando-as com as competências e os conhecimentos necessários ao alargamento desse legado e à criação de mais cultura. Daí que o modelo critique fortemente os autores que defendem uma educação e uma escola dependentes da sociedade, da economia e da política. A educação e a escola não devem conformar-se a modelos de sociedade ou de organização da sociedade. A escola deve formar pessoas livres e cultas, capazes de atingirem o máximo de que são capazes e fortemente imunes ao poder da propaganda e da coacção.” (1) 
Na referida reforma curricular, o modelo da escola cultural foi abandonado em favor do modelo da Área-Escola que “representa, na perspectiva de Manuel Ferreira Patrício, a aposta numa escola curricular e unidimensional, ao contrário do preconizado quer pela Lei de Bases do Sistema Educativo quer pela Proposta Global de Reforma. “
“...A diferença fundamental reside no carácter obrigatório e curricular da área-escola, por oposição ao carácter facultativo, livre e abrangente da escola cultural. “ (1)

Ora nestas duas acepções de escola há uma diferença substancial entre os que querem um “homem novo”e adaptado (2) ao que chamam de “novo normal” e os que querem um homem livre e culto com inteligência para atingir e expressar ao máximo as suas capacidades e potencialidades por forma a serem colocadas ao serviço dos outros... 
As mudanças curriculares não são inócuas, podem parecer “progressistas”, podem parecer que querem melhorar a educação, digamos assim, mas elas obedecem a princípios e valores que o estado ou os governos querem ver aprovados enquanto estão no poder. E nós sabemos que, geralmente, se pudessem, seria para sempre. (3)

Como naquela reforma, o que está em questão é uma questão de princípios e valores, sim, de ideologias em confronto, que exigem uma opção dos alunos e dos pais, sendo um dos factores mais relevantes, nesta diferença, a liberdade de poderem optar. 
A objecção de consciência ou, simplesmente, a liberdade de opção por um ou outro modelo, devia fazer parte da cultura democrática de cidadania.

Até para a semana!
_________________________

(2) "O comunismo tinha um plano louco - transformar o homem "antigo", o vetusto Adão. E isso foi conseguido... foi talvez a única coisa que se conseguiu. Em pouco mais de setenta anos, no laboratório do marxismo-leninismo criou-se um tipo humano especial - o Homo sovieticus. Há quem considere que essa é uma personagem trágica; outros chamam-lhe sovok. Eu acho que conheço esse homem, que o conheço muito bem, estou ao lado dele, vivi muitos anos ombro a ombro com ele. Ele sou eu. São os meus conhecidos, os meus amigos, os meus progenitores." Svetlana Aleksievitch, O Fim do Homem Soviético - Um tempo de desencanto, Porto Editora. (Prémio Nobel da Literatura 2015).

(3) No "Dr. Jivago", de Boris Pasternak, depois dos bolcheviques terem tomado o poder na Rússia, uma das disciplinas que os alunos deviam frequentar era “IC”. Perante a dúvida de Jivago sobre o que seria "IC", Katia, filha de Lara, explica: “instrução cívica”. Sim, era necessário construir o homem novo, o homem soviético, o homem que se ajustasse àquela nova sociedade onde o indivíduo se submetia ao colectivo e ao estado totalitário e a melhor maneira de o fazer era através da escola... 




 



05/10/20

"Os mete medo"


Acabou de passar Interstellar no AXN onde anotei uma frase que diz mais ou menos o seguinte: é terrível dizer a uma criança de dez anos que o mundo vai acabar.
É o que tem acontecido com "os mete medo" das alterações climáticas que todos os dias ameaçam com o fim do planeta em 2030.
"A Organização das Nações Unidas (ONU) está a desenvolver um plano de acção que visa o cumprimento de metas ambiciosas até 2030 para evitar a sexta extinção em massa, revela o “The Guardian”."





02/10/20

Desculpas pelo susto climático

Recentemente, “a primeira edição do Prémio Gulbenkian para a Humanidade distinguiu a activista ambiental Greta Thunberg." (1)
O pensamento único sobre alterações climáticas antropogénicas domina a cena política e social a nível mundial, não há, por isso, nada de novo neste quadro “mainstream” assustador.
Porém, como Régio, não vou por aí.
Limpar a ideia de que uma das fontes de financiamento da Gulbenkian veio do lucro do petróleo da Partex não apaga o passado desta instituição, em muitas vertentes de excelência, como, por ex.,  no âmbito cultural e educativo (2) em que supria o estado incumbente... e por isso, merece o apreço de todos os portugueses.
O que é lamentável é que seja mais um caso de revisão da história.

Por outro lado, é precisamente numa altura em que há cada vez mais dúvidas sobre as causas das alterações climáticas que a Gulbenkian atribui um prémio aos assustadores e demagógicos das alterações climáticas antropogénicas...
A área ambiental e a área climática não são minha especialidade mas tenho vindo a interessar-me sobre este assunto e ...”vemos , ouvimos e lemos”...
Em Portugal, os professores Delgado Domingos e Rui Moura, perceberam estas inverdades sobre o clima e, por isso, sofreram dificuldades ao defenderem posições contrárias e críticas ao pensamento único que grassa por todo o mundo. 

Também não deixa de ser curiosa a coincidência da publicação do livro de Michael Shellenberger “Apocalipse nunca: por que o alarmismo ambiental nos prejudica a todos”,  de que li apenas o resumo em artigo que o mesmo elaborou sobre o assunto. (3)
É um livro a pedir desculpa. Escreve Schellenberger: “Em nome de ambientalistas de todos os lugares gostaria de pedir desculpa formalmente pelo susto climático que criámos nos últimos 30 anos. A mudança climática está acontecendo. Não é o fim do mundo. Nem é o nosso problema ambiental mais sério. Eu posso parecer uma pessoa estranha por estar dizendo tudo isso. Sou activista do clima há 20 anos e ambientalista há 30."
"Aqui estão alguns factos que poucas pessoas sabem: 
-Os seres humanos não estão causando uma "sexta extinção em massa" 
- A Amazónia não é "os pulmões do mundo" 
- A mudança climática não está piorando os desastres naturais 
- Os incêndios caíram 25% em todo o mundo desde 2003 
- A  quantidade de terra que usamos para produzir carne - o maior uso da terra pela humanidade - diminuiu numa área quase tão grande como o Alasca 
- O acúmulo de combustível para madeira e mais casas próximas às florestas, não as mudanças climáticas, explica por que existem mais e mais perigosos incêndios na Austrália e na Califórnia.
- As emissões de carbono estão diminuindo na maioria dos países ricos e vêm diminuindo na Grã-Bretanha, Alemanha e França desde meados da década de 1970
- A Holanda ficou rica, não pobre, ao se adaptar à vida abaixo do nível do mar 
- Produzimos 25% mais alimentos do que precisamos e os excedentes de alimentos continuarão a aumentar à medida que o mundo aquecer 
- A perda de habitat e a matança direta de animais selvagens são ameaças maiores para as espécies do que as mudanças climáticas 
- O combustível da madeira é muito pior para as pessoas e a vida selvagem do que os combustíveis fósseis 
- Prevenir futuras pandemias requer mais e não menos agricultura “industrial”.

É isto. Neste momento, há quem atribua prémios por inverdades e quem peça desculpa por essas inverdades. Não é difícil saber a quem atribuir o prémio para a Humanidade.

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(1) A notícia de que a F. C. Gulbenkian tinha premiado a menina Greta levou-me a comentar o acontecimento como "Um nojo!", em 20 de Julho no FB, em relação a um post de Miguel Castelo Branco: "Efeitos colaterais da pandemia. Se o ridículo matasse!.
Também em relação ao post de João Gonçalves: “Decidimos dar um sinal à sociedade, lançando este prémio para a humanidade”, sem a mancha do petróleo a turvar o caminho, contou Isabel Mota.” Quem tem vergonha da biografia notável da instituição a que preside, até repugna as empregadas de limpeza. Um nojo, não o texto mas o que ele revela.Um nojo!", escrevi:
O artigo de Michael Schellenberger censurado pela Forbes, republicado no Quillette, sobre o seu livro «Apocalypse Never: Why Environmental Alarmism Hurts Us All» apresenta alguns FACTOS inconvenientes...
Um nojo!
Schellenberger pede desculpa, Delgado Domingos e Rui Moura, lá do sítio onde estão, devem desmanchar-se a rir!
(2) Sou do tempo das bibliotecas itinerantes da FCG que levavam a cultura possível a todo o país...
(3) Schellenberger escreve um livro a pedir desculpa, atitude rara, mas intelectualmente honesta, num meio em que ninguém pode ter dúvidas e se tiver está sujeito às penalizações dos novos totalitários.