07/10/20

A escola cultural


Em 2018, foi criada, no currículo escolar, a área de "cidadania e desenvolvimento". É uma manta de retalhos em que são tratados temas como: Educação para a Saúde, Educação para a Segurança, a Defesa e a Paz; Educação para o Desenvolvimento; Educação para o Risco; Educação para os Media; Educação Rodoviária; Dimensão Europeia; Educação do Consumidor...
Perante este albergue curricular em que vive a educação talvez valha a pena voltar a reflectir sobre o debate que aconteceu com a reforma curricular de 89.

Como actualmente, nessa altura, estavam em confronto duas ideias de escola. Uma dessas ideias de escola é a chamada “escola cultural”.
Segundo Ramiro Marques “... o modelo da escola cultural é fortemente personalista e pedocêntrico. Dá a primazia à pessoa face ao grupo, ao aluno face ao professor, à aprendizagem face ao ensino, à individualidade da pessoa humana face à sociedade e à cultura face à economia ... “
“ ... A escola não tem como finalidade principal produzir cidadãos produtores e tão pouco cidadãos consumidores. A finalidade principal da escola é a transmissão do legado cultural às novas gerações, apetrechando-as com as competências e os conhecimentos necessários ao alargamento desse legado e à criação de mais cultura. Daí que o modelo critique fortemente os autores que defendem uma educação e uma escola dependentes da sociedade, da economia e da política. A educação e a escola não devem conformar-se a modelos de sociedade ou de organização da sociedade. A escola deve formar pessoas livres e cultas, capazes de atingirem o máximo de que são capazes e fortemente imunes ao poder da propaganda e da coacção.” (1) 
Na referida reforma curricular, o modelo da escola cultural foi abandonado em favor do modelo da Área-Escola que “representa, na perspectiva de Manuel Ferreira Patrício, a aposta numa escola curricular e unidimensional, ao contrário do preconizado quer pela Lei de Bases do Sistema Educativo quer pela Proposta Global de Reforma. “
“...A diferença fundamental reside no carácter obrigatório e curricular da área-escola, por oposição ao carácter facultativo, livre e abrangente da escola cultural. “ (1)

Ora nestas duas acepções de escola há uma diferença substancial entre os que querem um “homem novo”e adaptado (2) ao que chamam de “novo normal” e os que querem um homem livre e culto com inteligência para atingir e expressar ao máximo as suas capacidades e potencialidades por forma a serem colocadas ao serviço dos outros... 
As mudanças curriculares não são inócuas, podem parecer “progressistas”, podem parecer que querem melhorar a educação, digamos assim, mas elas obedecem a princípios e valores que o estado ou os governos querem ver aprovados enquanto estão no poder. E nós sabemos que, geralmente, se pudessem, seria para sempre. (3)

Como naquela reforma, o que está em questão é uma questão de princípios e valores, sim, de ideologias em confronto, que exigem uma opção dos alunos e dos pais, sendo um dos factores mais relevantes, nesta diferença, a liberdade de poderem optar. 
A objecção de consciência ou, simplesmente, a liberdade de opção por um ou outro modelo, devia fazer parte da cultura democrática de cidadania.

Até para a semana!
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(2) "O comunismo tinha um plano louco - transformar o homem "antigo", o vetusto Adão. E isso foi conseguido... foi talvez a única coisa que se conseguiu. Em pouco mais de setenta anos, no laboratório do marxismo-leninismo criou-se um tipo humano especial - o Homo sovieticus. Há quem considere que essa é uma personagem trágica; outros chamam-lhe sovok. Eu acho que conheço esse homem, que o conheço muito bem, estou ao lado dele, vivi muitos anos ombro a ombro com ele. Ele sou eu. São os meus conhecidos, os meus amigos, os meus progenitores." Svetlana Aleksievitch, O Fim do Homem Soviético - Um tempo de desencanto, Porto Editora. (Prémio Nobel da Literatura 2015).

(3) No "Dr. Jivago", de Boris Pasternak, depois dos bolcheviques terem tomado o poder na Rússia, uma das disciplinas que os alunos deviam frequentar era “IC”. Perante a dúvida de Jivago sobre o que seria "IC", Katia, filha de Lara, explica: “instrução cívica”. Sim, era necessário construir o homem novo, o homem soviético, o homem que se ajustasse àquela nova sociedade onde o indivíduo se submetia ao colectivo e ao estado totalitário e a melhor maneira de o fazer era através da escola... 




 



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