01/05/14

Crianças medicadas



1. O trabalho com crianças no período pré-operatório, é sempre surpreendente e em geral são sessões divertidas onde as características das crianças deste estádio de desenvolvimento são evidenciadas facilmente. É uma verdadeira aventura pedagógica, a criatividade é soberana e a realidade é o que menos importa.
Integro-me neste espírito e espero que aconteçam as mais inesperadas situações...
A minha vontade de querer voltar ao trabalho de avaliação psicológica ou de terapia é sistematicamente "boicotada" e confrontada com a vontade de M. não querer trabalhar. Ler? É melhor inventar uma palavra ou o resto da palavra, e nem sequer é necessário olhar para o texto...
De repente, M. diz-me: Queres ver a pirueta que eu faço quando me sinto feliz ?
Quero, claro... e lembro-me da história de Gillian Lynne...
M. tem nível cognitivo dentro da média, linguagem sem problemas, maturidade psicomotora ... parece que está tudo bem na vida desta criança. Mas não está bem na escola e, na sua turma, apresenta as maiores dificuldades de adaptação na transição do Jardim de infância para o 1º ciclo.
Houve alguns sinais de instabilidade no Jardim de infância, nada de especial para uma criança nesta idade mas a escola tem exigências de aprendizagem, comportamentais e emocionais que já não se coadunam com estas características.
O calvário destes pais começa nesta altura. Estas crianças não vão conseguir acompanhar os colegas.  Os pais desdobram-se em consultas a especialistas e os diagnósticos, coincidentes ou não, nunca são completamente satisfatórios e, pior ainda, não têm a consequente e eficaz intervenção.
O diagnóstico costuma ser Perturbação de hiperactividade com défice de atenção (PHDA) e a intervenção é feita habitualmente com a medicação destas crianças. O problema é quando a medicação não traz melhorias, como é muitas vezes o caso, o tempo passa e não há progressos na leitura, escrita e comportamento.
A medicação pode ser  necessária. No entanto, em muitos casos, exagerada, e, provavelmente, em detrimento da intervenção psicológica e educativa.

2. A seguir aos EU, Portugal era (2008) o país que mais medicava as crianças (Isabel Stilwell, Destak).
“... Portugal comanda o ranking dos países da União Europeia com maior taxa de consumo de psicofármacos por crianças e adolescentes, o que é obviamente triste”, lamenta ainda Pedro Strecht, considerando que o uso abusivo desta medicação acaba por ser sintomático de uma “doença” generalizada: “A nossa sociedade procura cada vez mais pílulas para tudo: escola, felicidade, amor...”, diz, mas o que importa perguntar – remata – “é se estamos a calar sintomas ou a tratar pessoas...”.
Em Portugal, de facto,   as vendas de medicamentos para crianças hiperactivas e com défice de atenção aumentaram 78%, em 5 anos. Os números sugerem que há cada vez mais crianças e jovens medicados para a concentração.
Marilyn Wedge, autora de Pills are not for preschoolers: A drug-free approach for troubled kids, interroga: Nos EU pelo menos 9% das crianças em idade escolar foram diagnosticadas com PHDA, e tomam medicamentos. Na França, a percentagem de crianças diagnosticadas e medicadas para a PHDA é inferior a 5 % .
Em 2009, num estudo elaborado numa escola básica, a partir da informação dos professores, em 824 alunos, havia 21 alunos (2,35%) diagnosticados e medicados para a hiperactividade.
É interessante verificar que se trata principalmente de um problema que ocorre no 1º ciclo, diminuindo à medida que os alunos se vão desenvolvendo.
Curiosamente, esta é também a tendência da evolução da distracção. 
Sabemos que a atenção depende da mielinização das estruturas nervosas e, neste caso, isso se faz tardiamente.
Dizer que uma criança tem falta de atenção é, em geral, ocioso. É o sintoma comum a quase todos os alunos, principalmente os que apresentam baixo rendimento escolar.

3. É necessário que haja mais investimento nas intervenções psicoterapêuticas com vista à modificação comportamental. 
A intervenção psicopedagógica alternativa à medicação poderá passar por adaptações curriculares mais ou menos profundas de acordo com a dimensão do problema. Alguns exemplos:
Adaptações no ambiente de aprendizagem (p.ex., proporcionar um local na sala de aula onde a criança possa trabalhar isoladamente, se necessário, estabelecer regras bem claras e exigir o seu cumprimento …); 
Adaptações para obter a atenção dos alunos (p. ex., demonstrar e modelar entusiasmo e excitação sobre a lição que se seguirá, usar o contacto visual, fazer com que os alunos olhem para o professor quando este se lhes dirige …), 
Adaptações no ritmo de trabalho (p.ex., ajustar o ritmo de aula à capacidade de compreensão do aluno, alternar actividades paradas com actividades mais activas …); 
Adaptações nos métodos de ensino (p. ex., relacionar a informação nova com a experiência da criança, dividir as tarefas complexas em tarefas mais simples …); 
Adaptações nas estratégias (p.ex., evitar o uso de linguagem abstracta como metáforas ou trocadilhos, usar frases curtas e reduzidas ao essencial do assunto estabelecido …); 
Adaptações para manter os alunos em actividade (p.ex., estabelecer na turma um ambiente mais cooperativo e menos competitivo, ter a certeza de que todos os alunos compreenderam a tarefa que têm que executar antes de os colocar a trabalhar individualmente …), 
Adaptações na avaliação (p.ex., permitir instrumentos de avaliação alternativos: apresentação oral, resposta múltipla, etc., estabelecer, de comum acordo, expectativas realistas quanto aos resultados a alcançar …) 
Adaptações no tratamento de comportamentos inadequados (p.ex., evitar uma linguagem de confronto, remover objectos que possam iniciar um comportamento indesejado …).

4. A intervenção junto da família e sociedade é necessária para mudar os respectivos contextos, rotinas, actividades sociais.
Os estudos têm vindo a mostrar uma ligação entre a exposição aos "ecrãs" (TV, computadores, consolas...) e a falta de atenção.
"Uma criança que consome uma hora de televisão em cada dia terá duas vezes mais riscos de problemas quando estiver na escola primária." Uma criança da escola primária que consome uma hora de televisão por dia terá 50% de risco suplementar de desenvolver um problema de atenção na adolescência, tendo em conta as suas dificuldades de atenção iniciais". (Bruno Harlé, «Les écrans rendent-ils hyperactifs ?», Le Cercle Psy nº 11, pags. 52-55)

Por isso, os pais e educadores devem esperar que os seus filhos, desatentos e (hiper)activos deixem de o ser, se tiverem como intervenção de primeira linha o sue apoio e dedicação.

5. Aprofundar a investigação e descobrir as melhores formas de intervenção parece ser o melhor caminho para se poder ajudar as crianças com défice de atenção e hiperactividade.
A partir das pesquisas de Michael Posner sobre a atenção, é discutível tratar o défice de atenção como perturbação. A investigação sobre o que é atenção também mostra a desadequação da designação PHDA para todos os casos e há vários factores envolvidos em proporções diversas nesses casos. (B. Harlé, idem)

Por outro lado, a  atenção é fundamental para o sucesso escolar  e o sucesso em diversas situações da vida. D. Goleman , em “Foco - A atenção e seu papel fundamental para o sucesso",  considera a atenção “um recurso mental subestimado e pouco percebido” nas relações sociais.

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