28/08/09

As listas

  
Junho de 1871.
“Lentamente a lista da maioria vai-se formando em Lisboa: os pretendentes são numerosos, intriga-se, pede-se, alcançam-se cartas, mente-se, lisonjeia-se, adula-se. Os amigos íntimos agitam-se em volta do ministro, como um bando de pardais em torno de um saco de espigas. Um tem um primo que casou; outro sabe de um folhetinista que tem talento e a língua fácil; outro quer um cunhado; outro tinha um homem a que deve uns centos de mil reis, mas dispensa a candidatura para esse ladrão se o ministro fizer esse ladrão recebedor de comarca. Depois os círculos não são prometidos fixamente: os candidatos são mudados como figuras de um jogo de xadrez. A um a que se prometeu o círculo A, dá-se o governo civil de B – como indemnização. Tira-se a C a candidatura prometida porque se descobre que C é um traidor, pertence à oposição. Mas dá-se a E que foi quem denunciou C. Às vezes é um influente pelo círculo X, que, em paga da sua influência, pede que seu genro venha pelo círculo Z, onde é proprietário.
- Mas o círculo Z está prometido a Fulano, que é um professor distinto, um publicista. Seu genro tem pelo menos algum curso ?
- Meu genro não tem curso nenhum - mas eu tenho influência. O jornal da localidade já provou que ele era um animal – meu genro espancou a direcção. “

Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, (2004), As Farpas – Crónica mensal da política, das letras e dos costumes, PRINCIPIA, Publicações Universitárias e Científicas, pag. 58.

24/08/09

Que mil Santana Lopes floresçam...

Para uma Lisboa com Sentido, continua a fazer sentido o que o Prof. Amaral Dias escreveu:
“A nosso ver, os protagonistas, sendo raros, não deixarão de ser exemplares. Santana Lopes é indiscutivelmente um deles. Mas, sobretudo, pelo seu carácter antifóbico, visível na capacidade para o risco, o que o torna mais apto às decisões criativas e inovadoras. Essa capacidade numa Lisboa sempre sequiosa de ser como o mar ali vizinho, sempre igual e sempre diferente, desde que balizada, poderá oferecer para os mais chocantes problemas (toxicodependência, Sida, violência social, políticas para os sem-abrigo, etc.) soluções verdadeiramente desburocratizadas, inovadoras e criativas, com o mesmo afinco para o que poderão parecer problemas menos chocantes, nomeadamente culturalizar, no sentido verdadeiramente popular, a cidade. A subjacência de Eros, que faz a filigrana do seu discurso, deve ofuscar sadiamente o cinzentismo que faz a política nacional, da qual utilizei deliberadamente na primeira parte do texto, o que pode parecer paradoxal mas não é, um dos mais inteligentes políticos portugueses da actualidade.
Mas o que o Portugal de hoje precisa é que «mil Santana Lopes vindos de todos os quadrantes floresçam» para que a diferença mil vezes floresça.”[1]

[1] “Ó Lopes empresta o lápis…” in Carlos Amaral Dias (2003), Um psicanalista no Expresso do Ocidente, Temas e Debates – Actividades Editoriais, Lda , pags 198-200.

11/08/09

Camisola 9


Toda a nossa vida é comunicação. Sabemos que não é fácil comunicar mas também sabemos que não é possível não comunicar.
Porque quando não comunicamos através da linguagem verbal, comunicamos através da linguagem corporal sendo o nosso corpo a manifestar os sintomas do que está bem ou mal connosco, ou comunicamos através do silêncio ou através dos sinais e dos sintomas que manifestamos. A comunicação é tudo o que ocorre entre as pessoas, em suma, nas transacções entre as pessoas.
A transacção é a unidade de acção social, que envolve um estímulo e uma resposta. É como comunicamos uns com os outros, é o relacionamento interpessoal.
Mas as transacções são influenciadas pelos papéis que desempenhamos no teatro da vida, como refere Shakespeare:
"O mundo é um palco
e todos os homens e mulheres apenas actores;
Eles têm as suas saídas e entradas
Cada homem no seu tempo representa muitos papéis
" .
Sem querermos ou sem sabermos, estamos, através da comunicação, a transmitir scripts ou guiões aos nossos filhos.
Neste palco que é a vida cada um de nós tem um guião psicológico, um roteiro de telenovela, ou um argumento teatral.
O drama da vida começa ao nascer.
As instruções do guião são programadas dentro da criança por meio das transacções com as figuras parentais.
À medida que crescemos, aprendemos a desempenhar papéis: Heróis ou heroínas, vítimas ou justiceiros. E procuramos que outros façam os outros papéis do guião.
Há guiões para os indivíduos, para as famílias e para os países.
Cada indivíduo tem o seu próprio guião que por seu lado tem elementos do guião cultural e familiar.
O guião cultural é responsável pela exploração económica, pelas guerras civis, pelos suicídios, homicídios, superpopulação, alteração do equilíbrio ecológico.
Há ainda guiões subculturais que têm a ver com o local geográfico, antecedentes étnicos, crenças religiosas, sexo, educação, idades…
Todos os dias na comunicação social assistimos, infelizmente em muitos casos, à concretização destes guiões culturais e subculturais.
Os guiões familiares, por seu lado, perpetuam os guiões culturais: O filho que é a ovelha negra da família, viver de subsídios, pais que não cuidam dos filhos e filhos que não cuidam dos pais.
Ou, pelo contrário, o filho que é o camisola 9 do Real Madrid.
Este guião individual é, relativamente ao êxito, o de um vencedor.
Dado que assume riscos, certamente calculados, se compromete a atingir as metas a que se propõe.
Socialmente os vencedores são pessoas firmes nas suas decisões, confiáveis, lutam pelos seus objectivos com tenacidade.
"Cumpri o meu sonho de menino", isto é, cumpri o guião de vencedor.
A camisola 9 é um guião que alguns gostam de mostrar, publicamente, porque se identificam com esse guião. Porém, não é o seu próprio guião.
Poucas pessoas são totalmente vencedoras ou perdedoras sendo que a maioria dos indivíduos triunfa em alguns aspectos e perde em outros.
Mas em grande parte ser vencedor depende da comunicação, das transacções, que na nossa infância tivemos com os nossos pais. Se o guião for de vencedor então podemos cumprir o nosso sonho de meninos.

01/08/09

Mentir, mentir, mentir…

Ao longo da nossa vida temos encontrado pessoas que mentem.
Algumas mentem por algum constrangimento ou medo.
Algumas não o fazem com grande frequência e também não prejudicam ninguém.
Muitas vezes acontece com familiares e amigos e também aí não temos grandes problemas.
Mas às vezes, encontramos pessoas que mentem constantemente. Pessoas que mentem de forma compulsiva e não têm uma razão aparente para fazê-lo, são conhecidas como mentirosos patológicos.
Será que para se ser político tem que se ser mentiroso ? Um político que fale verdade poderá alguma vez ganhar eleições ?
Não somos nós que gostamos que nos enganem ? E votamos exactamente em quem nos engana ?
Às vezes por detrás de qualquer mentira, há uma intensa necessidade de ser aceite e amado. Veja-se o caso da mentira amorosa em que se promete tudo ao amado ou à amada só porque se tem necessidade de afecto.
Chegamos mesmo a enganar o espelho e fazemos uma plástica para que, não aprovando o que vemos, nos possamos sentir admirados.
Mas muitos mentirosos, patológicos, não ficam contentes apenas em dizer mentiras. Eles vão um pouco mais além. Transformam as suas vidas numa mentira.
Chega a haver situações, em que o indivíduo adopta uma identidade completamente diferente daquela que realmente possui.
Um terço dos mentirosos patológicos adopta identidades falsas, mentem sobre a idade, mentem sobre a sua profissão, sobre os seus familiares fingindo que descendem de famílias importantes.
Os mentirosos patológicos são as pessoas mais atraentes que podemos conhecer.
São especialistas no engano e na fraude e não demonstram emoções ou ficam perturbados quando mentem.
Mas quais são as origens da mentira ? O que leva as pessoas a mentir ?
Tudo começa na nossa infância. Pode acontecer que essas pessoas ficaram com receio de serem abandonadas pelos pais, muitas vezes instáveis.
Podem ser pessoas que passaram por situações de abuso em que foram envergonhadas e submetidas a vexames muito grandes.
Muitas delas, começaram a mentir como forma de se protegerem das ameaças e da culpa.
Por outro lado, a mentira é aprendida. E se é aprendida, é aprendida com alguém. Desde logo, esse tipo de mentirosos nasce e cresce em famílias onde são vítimas de uma infinidade de decepções, mentiras e fraudes.
A modelagem a que ficam sujeitos vai modificar os seus comportamentos. Para lidar com a realidade dura da sua vida, começaram a utilizar um mundo mágico de fantasias, ou seja, um mundo de negações.
Outros mentirosos cresceram com uma auto-imagem miserável e a mentira é uma forma de fortalecerem a sua auto-imagem contando histórias grandiosas que servem como compensação para as suas dificuldades.
E temos muitas vezes, na criança, o mitómano, e nos adultos, o impostor que se faz passar por quem não é e por aquilo que nunca foi.
A mentira é um comportamento autodestrutivo porque, ao mentir, o sujeito nega-se a enfrentar as suas dificuldades e assim, vai perpetuá-las.
Além disso, a verdade vem sempre ao de cima, mesmo que isso leve muito tempo a acontecer.
Mas acontece. Pelo menos vai ser verdade para o próprio mentiroso.

28/07/09

Antes oportunidades agora que novas oportunidades depois

No final do ano lectivo, surgem várias opiniões sobre os resultados da avaliação.
Este foi um ano difícil pelas condições que foram criadas às escolas e ainda bem que algumas mudanças não foram concretizadas. Mesmo assim, estamos com muita vontade de ir de férias.
A ideia de que fazer reformas é muito bom e positivo, não é de todo verdadeira.
É necessário fazer reformas que sejam aplicáveis e que melhorem, de uma maneira geral, a vida das pessoas e, neste caso, a vida das escolas, dos alunos e das famílias.
Mas o final do ano implica tomar decisões importantes para a vida dos alunos.
Não podemos confundir querer com poder. Embora também digamos que querer é poder, há limites para essa sugestão, seja auto-sugestão ou hetero-sugestão.
A ideia de que todos podem concluir o ensino básico ou o secundário é muito generosa mas sabemos que não é assim. Principalmente se pensarmos que se conclui o básico ou secundário cumprindo, pelo menos, os objectivos gerais do 3º ciclo ou do secundário.
Devia ser claro o que é uma coisa e outra. A sociedade devia saber o que resulta de determinados regimes educativos e que as consequências são diferentes.
Frequentar a escolaridade obrigatória é uma coisa, concluir com aproveitamento o 9º ano é outra bem diferente.
O conselho de turma deve analisar a situação dos alunos que se encontrem numa situação de retenção ou retenção repetida, no sentido de decidir se mais uma retenção será uma medida ajustada àquele aluno.Será que o aluno quer e não pode ou pode e não quer?
Muitas vezes usamos caracterizações que não explicam grande coisa: não estudam, não se interessam, tem problemas de memória, tem problemas de atenção, é hiperactivo, é preguiçoso, não anda com boas companhias…
Há muitos alunos que chegam ao SPO ou ao Gabinete de Psicologia com essa classificação: têm capacidades mas não as aproveitam.
Esta conclusão pode ser falsa.
Há pais que não querem ver a realidade e, por isso, negam as dificuldades e problemas de aprendizagem dos filhos, culpam a escola, os professores e técnicos da escola de não serem capazes de os ensinar ou educar.
Há alunos que têm capacidades cognitivas mas não têm as restantes ferramentas indispensáveis para aceder ao saber. Ou seja, apresentam dificuldades de leitura ou escrita.“Existe uma relação fortíssima entre a compreensão leitora e o sucesso escolar. O que acontece é que, frequentemente, os alunos, apesar de terem capacidades, não conseguem extrair o significado daquilo que estão a ler. Em muitos casos até descodificam textos muito facilmente, mas na verdade não sabem ler porque apesar de dominarem a técnica da descodificação não dominam a da compreensão”. [1]
Esta questão coloca-se com alguma acuidade em alunos que chegam ao 7.º ano de escolaridade e que não dominam a leitura.
O aluno pode querer ultrapassar as suas dificuldades, mas não saber ler é uma barreira de tal forma limitativa que o vai desmotivar e desinteressar das actividades académicas.E, penosamente, vai arrastar-se pelo 3º ciclo com insucesso, instabilidade e problemas de comportamento, deixando de estudar logo que possa.
Apesar de já haver algumas respostas alternativas, são ainda escassas e muitas vezes reservadas a alunos com determinadas características cognitivas e comportamentais, não correspondendo a uma correcta orientação escolar que tem em conta os interesses e as competências do aluno.
É necessário dar oportunidades, agora, a estes alunos e não oferecer-lhes novas oportunidades daqui a cinco ou dez anos.

[1] Adriana Campos (2009-05-27), Educare.pt - Ver aqui .

08/07/09

Uma pessoa é o sol, o mar, o pai e a mãe

1. Pedi a uma criança para fazer um desenho de uma pessoa. Perguntei-lhe o que tinha desenhado; respondeu que era “o sol, o mar, o pai e a mãe”.
Percebi, desta forma, o que era uma pessoa e o que era mais importante para a criança.
No princípio, era a água e o fogo. O mar e o sol. O líquido indispensável à vida. O fogo, a experiência fascinante que se perde no tempo e que ainda hoje continua a ser uma experiência infantil.
Importante é procurarmos na água o nascimento de um ser que parte para a grande caminhada da vida levando sempre as memórias da infância. Como Eugénio de Andrade em CANÇÃO INFANTIL:

Era um amieiro.
Depois uma azenha.
E junto um ribeiro.

Tudo tão parado.
Que devia fazer?
Meti tudo no bolso
para os não perder

E também procurar no fogo aquilo que quebra o gelo. O fogo do diálogo. Que começa por ser o diálogo corporal e que se prolonga no diálogo musical.
Mozart, Brahms, Tchaikovsky, tão próximos de uma canção de embalar, que é a mais bonita canção de amor entre dois seres: mãe -filho.
A música está no corpo do bebé que é o seu primeiro instrumento; está nos primeiros esforços que faz para galrear e balbuciar. Ela é ritmo antes de ser melodia. E como se sabe, para um bebé a primeira melodia é a voz da mãe, voz doce que se confunde com a voz mais dura do pai ... e ambos cantando-lhe o seu amor.
A criança não precisa de compreender as palavras para se sentir calma e feliz.
Antes da invenção dos instrumentos, os efeitos do canto vocal foram explorados pelo homem para fins precisos: o acalmar das crianças agitadas é o mais espalhado pelo mundo.
A canção de embalar acompanha a voz com movimentos da cabeça ou das mãos … estímulos visuais, que sincronizados com o canto, contribuem para a indução da calma, e são ainda reforçados pelo balanço do berço, que assim aumenta o efeito hipnótico do canto dirigindo-se ao sistema somestésico da criança.
2. Depois uma pessoa é o pai e a mãe, a família. A autoridade dos pais como modelo e como responsabilidade.
A autoridade dos pais baseia-se na vida e no trabalho dos pais, a sua personalidade de cidadãos, o seu comportamento.
O trabalho paterno deve consistir em saber como vive, de que se interessa, do que gosta e o que quer o seu filho. Quais são os seus amigos, com quem joga, o que lê e como assimila o que lê. Qual a sua atitude face à escola, aos professores, quais são as suas dificuldades, como é o seu comportamento nas aulas.
A ajuda dos pais não deve ser inoportuna, enjoativa e fastidiosa mas deve ser responsável. É necessário que a criança às vezes resolva os seus problemas sozinha e que se habitue a ultrapassar dificuldades e resolver questões complicadas.
As férias de Verão podem ser um tempo para esta experiência educativa pois têm todos estes ingredientes : o mar, o sol, o pai e a mãe.

04/07/09

Professores salvadores


Foi publicado, em Abril de 2009, o livro de Daniel Pennac “Mágoas da escola”[1]
É um livro que relata a história de um mau aluno mas que acaba por se tornar professor.
É um livro que recomendo, se me permitem, a todos os pais e professores e que não sendo um tratado de pedagogia é sobre o essencial da pedagogia.
“Mágoas da escola” fala dos maus alunos, aqueles alunos em que ninguém acredita, que não vão ser nada nem ninguém na vida. São os alunos sem futuro.
Não é um livro sobre a escola como refere o autor, mas um livro”sobre cábulas, sobre a dor de não aprender”.(pag 22)
Revejo todos os anos que tenho dedicado ao trabalho com muitas destas crianças.
Revejo o sonho deste cábula:
“Tenho um sonho….
Estou sentado de pijama, na berma da minha cama. Grandes algarismos de plástico, como aqueles com que brincam as crianças muito pequenas, estão espalhados pelo tapete, à minha frente. Tenho de “ordenar aquele algarismos”.
É o enunciado. A operação parece-me fácil, estou feliz. Debruço-me e estendo os braços para os algarismos. Apercebo-me de que as minhas mãos desapareceram. Não há mãos dentro do pijama. As minhas mangas estão vazias. Não é o desaparecimento das mãos que me aterroriza, é não poder alcançar os algarismos para os ordenar. O que seria capaz de fazer.”
Já falámos do final do ano lectivo e dos problemas que vêm com a avaliação.
Os interventores da escola continuam a não compreender esta coisa tão simples que é haver alunos que não são capazes de adequar o seu trabalho às necessidades do currículo.
Os tratados de pedagogia esquecem-se muitas vezes apenas deste pormenor.
E depois, concordo, temos a atribuição da constituição de bandos aos fenómenos dos subúrbios, às questões económicas, às questões sociais, ao desemprego, aos excluídos, à economia paralela e aos tráficos de toda a ordem…
Mas esquecemo-nos da única coisa sobre a qual podemos agir: “a solidão e a vergonha do aluno que não compreende, perdido num mundo em que todos os outros compreendem”.
Mas é preciso mudar também as expectativas dos pais, que confrontados com o filho que tem dificuldades, às vezes, são os primeiros a discriminá-lo.
Pennac fala dos professores salvadores e dos professores que dão estes alunos como casos perdidos.
“Os professores que me salvaram - e que fizeram de mim um professor - não tinham recebido nenhuma formação para esse fim. Não se preocuparam com as origens da minha incapacidade escolar. Não perderam tempo a procurar as causas nem tampouco a ralhar comigo. Eram adultos confrontados com adolescentes em perigo Pensaram que era urgente. Mergulharam de cabeça. Não me apanharam. Mergulharam de novo, dia após dia, mais e mais…acabaram por me pescar. E muitos outros como eu repescaram-nos literalmente. Devemos-lhes a vida” ( pag. 36).
_______________________________
[1] Pennac, Daniel (2009), Mágoas da escola, Porto: Porto Editora

17/06/09

Arqueologia ideológica


“Em que direcção se põe o sol ? “
Uma criança pouco informada ou com dificuldades de desenvolvimento poderá responder – põe-se do lado direito. Outro aluno com as mesmas características poderá responder – põe-se do lado esquerdo.
Facilmente podemos perceber que ambas as respostas podem estar certas e ambas as respostas podem estar erradas. Em termos de avaliação final terão que estar ambas erradas.
Então o que se passa ?
A criança não é capaz de raciocinar em termos de orientação, isto é, a criança não dispõe de estruturas cognitivas que lhe permitem compreender que a sua posição é relativa. Isto é, o sol pode pôr-se de qualquer lado: da esquerda ou da direita dependendo do local em que se encontra.
Então a resposta não pode ser essa.
Na nossa vida passamos o tempo a falar de esquerda e de direita.
As duas posições políticas tal como as posições geográficas podem estar certas e as duas podem estar erradas. Depende do ponto de vista.
Para me orientar preciso da bússola ou de sinais que me dêem a certeza do lugar onde estou. Mas é também necessário ter estruturas cognitivas que permitam compreender os pontos cardeais.
Esta é a falácia da política: esquerda é positivo, pensar bem, social, democrática, tudo o que faz é bem feito, tudo o que faz é para bem e em nome do povo.
Um golpe de estado de esquerda? Bem… enfim… é em nome do povo… quer dizer….
Uma ideia interessante da campanha eleitoral de 2002, para além da ideia do cherne, foi Durão Barroso vir falar de arqueologia ideológica a propósito destes conceitos.
Se tinha dúvidas praticamente desvaneceram-se após o 11 de Setembro e por tudo o que se passou desde então.
Poderá existir um “arquipélago de sangue”, de Noam Chomsky, mas isso não impede que o “arquipélago de Gulag” tenha sido menos violento.
A arqueologia ideológica continua aí. Durão Barroso tinha razão.
E alguns especialistas em esburacar ainda mais a sociedade, sem nada de novo apresentarem, de forma criativa, que possa tornar o preço do pão menos caro e as pessoas um pouco mais felizes, insistem em ficar calados perante os desvarios dos amigos ditos de esquerda ou de direita.
Os direitos humanos não são de esquerda nem de direita, ou seja, dos partidos que estão à esquerda ou estão à direita. As questões civilizacionais não são dos que se sentam à esquerda ou à direita…
Como nas questões geográficas das crianças, temos que ter outro referencial que não sejam os clichés estafados de bom e de mau pelo facto de se sentarem à esquerda ou à direita. Em última análise são apenas isso: sentam-se à esquerda ou à direita.
Mas o referencial deverá ser que estão certos ou errados conforme defendam ou não os direitos humanos, conforme defendam ou não princípios axiológicos e civilizacionais.
Se o sol quando nasce é para todos bem podem tapá-lo com uma peneira que não é por isso que os que se sentam à esquerda são mais iluminados do que os que se sentam à direita. A não ser que tenham os pontos cardeais da liberdade, da democracia, da justiça e da paz.

11/06/09

Orientação escolar e profissional


Um dos problemas que se coloca a muitos alunos nessa fase do ano lectivo diz respeito ao que irão fazer no próximo ano lectivo.
Para os que estão a terminar o 9º ano. Com o final da escolaridade básica coloca-se uma questão fundamental: Continuar a estudar ou ingressar no mundo do trabalho.
Para a maioria dos alunos a escolha preferida será a continuação dos estudos. Mas estudar o quê e onde ?
Como se sabe hoje temos várias escolas que podem certificar os alunos a nível do ensino secundário: As escolas do ensino secundário, as escolas profissionais, as escolas do ensino artístico, os centros de formação, os centros de formação do sector de actividade…
As escolas do ensino secundário têm também outro tipo de respostas que não apenas as dos cursos científico-humanísticos e tecnológicos.
Estes caminhos são muitas vezes esquecidos pelos alunos e pais, quando permitem ou querem que os filhos ingressem imediatamente na vida activa sem antes terem acesso à formação profissional.
Isto tem implicações na qualificação profissional dos trabalhadores e engrossa o contingente da mão-de-obra pouco qualificada.
Há, no entanto, alunos que não completam o 9º ano.
Para eles coloca-se também o problema da orientação quando devido a sua idade, ao seu comportamento ou às suas dificuldades de aprendizagem já não estão bem na escola e a escola já nada lhes diz e passam do desinteresse ao absentismo e muitas vezes ao abandono.
O insucesso repetido é assim muitas vezes a base da desmotivação que leva ao cominho mais fácil: o abandono.
Há alunos que deixam de ir à escola no dia em que completam os 15 anos. Nem sequer deixam terminar o ano lectivo que é o correcto para cumprir a legislação em vigor, prejudicando-se muitas vezes a si próprios, porque se foi viver com a namorada, porque se engravidou, por muitas razões, certamente compreensíveis mas pouco racionais.
No meio de tudo isto florescem orientações pouco científicas e pouco pedagógicas.
As crianças e adolescentes com problemas escolares deviam ter diagnósticos correctos mas para elas muitas vezes começa aí outro calvário.
São enviadas ao médico para serem vistas pela falta de memória ou de atenção, outras vezes vão aos xamanes da região, ou são caracterizadas com diagnósticos mais modernos como hiperactividade ou são consideradas espíritos especiais e caracterizadas como indigo ou cristal.
O que é preciso é encontrar uma justificação…
É por isso que há necessidade de equipas multidisciplinares que possam compreender e orientar estas situações. Estas equipas devem colaborar estreitamente com a escola e, principalmente, com a estrutura de decisão que é o conselho escolar ou o conselho de turma. É necessário, no entanto, dar mais competências organizacionais a umas e a outro.
Os recursos que temos são escassos mas é possível serem mais bem rentabilizados. Assim como a coordenação das respostas, a articulação dos serviços e dos apoios educativos e sociais.

04/06/09

CIF - Dificuldades de aplicação

1. Os critérios para a integração ou exclusão das NEE de alunos com deficiência mental e dificuldades de aprendizagem têm dado origem a dificuldades na elegibilidade dos alunos com NEE.
Estas dificuldades vêm provar a existência de vários problemas de aplicação da CIF. Tenho visto grandes discrepâncias no entendimento relativo à aplicação da CIF. Há de tudo, desde quem não tenha em conta as exclusões, dando origem a listagens intermináveis de capítulos, esquecendo o “core” a estabelecer para um perfil de funcionalidade, como refere Simeonson, até às interpretações mais ou menos “a olho” no que se refere principalmente ao primeiro qualificador…
Relativamente às funções do corpo – funções intelectuais, são evidentes várias interpretações relativamente ao primeiro qualificador. Veja-se, por exemplo, aqui, uma dessas interpretações, da qual discordo.
2. Tentando estabelecer algum consenso sobre este assunto, em meu entender, devem ser considerados os critérios psicométricos que definem a deficiência mental [1] de acordo com a Classificação da Deficiência Mental da OMS, DSM IV [2] e WISC – III [3] , referidos no Quadro seguinte:


Para um aluno ser considerado portador de NEE de tipo cognitivo (deficiência mental) a classificação deverá ser: Deficiência mental (ligeira, moderada, grave e profunda) – muito inferior [4].
Em meu entender é suficiente que este score seja apenas numa das escalas da WISC – III (Escala verbal, Escala de realização ou Escala completa).
No entanto, a tomada a decisão do Conselho de Turma deve ainda ter em conta critérios de tipo adaptativo, educativo e de personalidade.
Os alunos considerados com deficiência mental são abrangido pelo DL 3/2008 pelas medidas educativas previstas nas alíneas b) ou e), que se excluem mutuamente, e podem ser acumuladas com outras medidas quando necessário.
3. Os alunos que não se enquadrem nestes critérios (deficiência mental) e o nível cognitivo se situe a nível médio inferior e inferior (QI entre 80 e 90; 70 e 80), devem ser considerados no âmbito das dificuldades de aprendizagem, tendo em conta as situações seguintes:
No primeiro caso, se as dificuldades de aprendizagem forem consideradas graves (alexias, dislexias), o aluno deverá ser considerado nas NEE no domínio comunicação, linguagem e fala.
As medidas educativas a aplicar são, principalmente, as abrangidas pela alínea a), devendo ser ponderado se o aluno deve ser também apoiado por professor de EE (alínea d) do nº 2 do artº 17).
Considero dificuldades de aprendizagem graves, nos alunos do 1º ciclo, quando se verificar um atraso de dois anos na aprendizagem da leitura e escrita, isto é, quando o aluno não tiver adquirido, de forma consistente, o 1º e 2º nível da leitura e escrita, devendo ser considerado como elegível para o apoio da educação especial.
Quanto aos outros casos, quando se verificar que, na avaliação de prova de despiste da dislexia específica, o aluno ultrapassar 75% de erros[5] , deve também ser considerado elegível para a Educação Especial no domínio da comunicação, linguagem e fala.
No segundo caso, envolvendo perturbações disruptivas do comportamento e de défice de atenção (perturbação de hiperactividade com défice de atenção, perturbação de comportamento e perturbação de oposição), devidamente avaliadas por instrumento adequado e que se enquadrem nos critérios estabelecidos no DSM IV, deverão também ser considerados no domínio emocional/personalidade e elegíveis para a Educação Especial.
Além disso, o aluno deverá manifestar, cumulativamente, dificuldades de aprendizagem, ainda que não apresentem a gravidade descrita na primeira situação.

[1] No caso de se tratar de crianças até aos 6 anos de idade, deverá ser avaliado o seu desenvolvimento através de instrumentos adequados, como por exemplo: WPPSI - R ou Escala de Desenvolvimento de Griffiths, tendo em conta quer o respectivo QI ou QD.
[2] American Psychiatric Association - DSM IV – Climepsi Editores, 1996
[3] Wechsler, D. - WISC III – Escala de Inteligência de Wechsler para crianças III – Manual – CEGOC, 2003
[4] A classificação de Lou Brown: com QI inferior a 51 era, em 1987, deficiência intelectual severa (severe intelectual disabilities), e em 1995, deficiência intelectual acentuada (significant disabilities). Estes alunos devem ser objecto de um currículo funcional.

[5] Prova de avaliação da dislexia específica, por exemplo, PEDE, de Condemarin e Blomquist