29/04/21

Amor e ódio


A RTP1 exibiu na última semana alguns filmes clássicos como Lawrence da Arábia, West side story - amor sem fronteiras, Green book – um guia para a vida, que me sugeriram haver entre eles um fio condutor: o amor em contraposição ao ódio que torna o amor impossível. 

A vida de Lawrence da Arábia (1) manifesta um personagem singular que se envolve na luta de árabes contra o império turco-otomano,  com a violência que sempre acompanha estas guerras pela supremacia entre povos.  

Em West side story - Amor sem fronteiras (2), o conflito entre jovens de Nova York,  de um gang de anglo-saxónicos  versus um gang de porto-riquenhos, mostra como o ódio de grupos diferentes torna impossível  o amor entre as pessoas e a felicidade algo sempre distante.

Em Green book – Um guia para a vida (3), somos confrontados com a ligação inesperada entre um pianista afro-americano de renome mundial,  músico clássico, com um italo-americano, o seu motorista, em que ambos  enfrentam os perigos de uma era de segregação racial, ligação que não é compreendida nem aceite  pela sociedade da altura (anos 60).  


Nestas três situações podemos constatar que o amor e o ódio  atingem  toda a sociedade: indivíduos, famílias, etnias, grupos... O conflito e o ódio não são nem mais nem menos do que uma mancha que se espalha igualmente por toda a sociedade e têm acompanhado toda a história da humanidade: West side story é a história de Anton e Maria, no séc. XX (1961), de Romeu e Julieta, no séc. XVI (1591), de Píramo e Tisbe, no sec. I AC.


Para os etologistas, amor e ódio são comportamentos etológicos fundamentais  inscritos na nossa natureza, inatos. Por isso, o ódio está em ambos os lados dos conflitos, sejam racistas, xenófobos, religiosos, políticos, desportivos, de discriminação social ou outra, violência familiar e doméstica,...

A  pergunta é então: por que não mudam os comportamentos das pessoas, ou seja, por que não se procuram outros caminhos igualmente etológicos como a ritualização e os comportamentos vinculativos ?

Mesmo quando há vencedores nestes conflitos, a prazo são todos perdedores, como em West side story, mas isso não é suficiente para inibir o ser humano a que o ódio  volte sempre a renascer das cinzas do último conflito...


A esperança de ultrapassar o ódio, apesar disso, é que também pode haver mudança, se os indivíduos forem vistos como  seres humanos e não como grupos diferentes, inferiores ou superiores. A esperança de que a vitória está na vinculação amorosa  entre  Anton e Maria, que  não conseguiram superar o ódio dos gangs, nem evitar uma batalha de rua, fatal, mas que coloca a interrogação: Para quê o ódio ?  

No nosso futuro, a nossa vida vai continuar a ter estes comportamentos etológicos: agressividade e amor. Quero acreditar que um dia, qualquer individuo será visto como ser humano e os vínculos amorosos terão um papel efectivo nas nossas relações.

 

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(1) O argumento do filme baseia-se na biografia de T. E. Lawrence (1888–1935) descrita no seu livro Sete Pilares da Sabedoria. Realização: David Lean (1962).

(2) West Side Story - Amor Sem Barreiras. Realização de Robert Wise. (1961).

(3) Green Book - Um guia para a vida. Realização de Peter Farrelly (2018).






23/04/21

Psicologia da corrupção 3


Por que é que jogo no euromilhões ? Se nunca me sai nada e a probabilidade de sair é praticamente nula porque insisto semanalmente em tentar a sorte grande ?

O que me move neste comportamento é sobretudo a crença de que o dinheiro,  resolveria os meus problemas e satisfaria a ambição de ter uma boa vida, com tudo o que isso implica. 

Para atingir estes fins há quem não queira esperar por esta "basuca" pessoal e prefira os atalhos. A política na sua versão menos nobre  é um dos atalhos que me pode dar o euromilhões.  

Tentar a sorte por estes caminhos ínvios parece ser cada vez mais frequente, tolerado e banalizado, encolhemos os ombros e sentenciamos: “são todos iguais”.

 

Porém, na corrupção não há apenas uma pessoa mas uma rede que envolve corruptores, corrompidos, cúmplices silenciosos ou activos onde todos são ganhadores ou pelo menos pensam que são.

O que se passou no processo “operação marquês” foi exactamente esta tolerância e cumplicidade de várias instituições, principalmente de um governo e de  um partido onde ninguém viu ou sabia de nada, ninguém disse nada, mas onde imperam compromissos, tácitos ou não, tanto mais fortes quanto o nível de recompensas que daí advêm.

E tudo isto feito com a tolerância de cidadãos que elegem democrática e repetidamente  estas pessoas ... 

 

Se pensarmos que  a corrupção não é um acontecimento recente, sempre existiu, e está entranhada nas democracias de forma sistémica, como compreender este comportamento? 

Podemos pensar a  corrupção a três níveis:  Individual, cultural e social.

Digamos que a cultura e a sociedade  proporcionam e facilitam a corrupção. A organização do estado, a organização das autarquias, facilitam estas circunstâncias, com a contratação directa de bens e serviços, o nepotismo, a criação de empresas municipais, a mistura estado-empresas como as PPP (1), aempresas e contas bancárias offshore. (2)

 

Porém, nem a cultura nem a organização social, são justificação suficiente para se entender este comportamento. O que parece ser essencial no desvio comportamental, na  desonestidade, na ambição excessiva do sucesso sem olhar a meios, está no indivíduo, no seu desenvolvimento psicológico, na aquisição de princípios éticos e morais que permitem tomar decisões íntegras sobre a verdade e a mentira.(3)

Então será que é possível quebrar estas redes de corrupção a partir de uma educação voltada para a  ética e assente na modelagem feita na família e nas instituições ? É certamente necessário aumentar os mecanismos de fiscalização e diminuir a sensação de impunidade dos acusados.(4) É necessário que as instituições do estado sejam independentes. Mas não chega mudar as leis (5). É 
necessária uma reflexão profunda sobre o silêncio, a tolerância e a banalização do mal, como escreveu Hannah Arendt. Estes desvios não se justificam por estarmos a obedecer a ordens, por fazermos parte de uma engrenagem de que não podemos sair. Podemos sempre dizer não, “não vou por aí”.


Até para a semana, com muita saúde.

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(1) Como aqui refiro, as PPP podem ser vantajosas para a organização do estado e da sociedade mas isso depende da forma como forem negociadas... 

(2) E também onshore. "O termo offshore vem dos tempos dos corsários que saqueavam os mares e depositavam a pilhagem offshore (fora da costa)" (Wikipédia)


(4) “Quando os corruptos começam a roubar, podem se sentir culpados, mas, então, se acostumam com isso e não se importam mais. Se não forem punidos, esse comportamento ficará cada vez mais normal”, Antoine Bechara. 
O neurocientista compara o cérebro do corrupto sistêmico, incluindo políticos desonestos, ao de um psicopata, cuja amígdala funciona de maneira diferente do restante da população. “O psicopata verdadeiro tem uma patologia real no córtex pré-frontal. Ele não se sente obrigado a seguir as regras”, diz Bechara. “A raiz do comportamento corrupto está na recompensa. Nós não agimos dessa forma porque conseguimos controlar nosso comportamento e, na minha opinião, fazemos esse controle por causa da punição. Se o corrupto não é condenado pela Justiça, não há razão para deixar de se comportar de maneira desonesta”, acredita. ("Como funciona o cérebro de uma pessoa corrupta")

(5) Como combater a corrupção quando o centro da corrupção são as instituições democráticas: parlamento, governo, autarquias, etc.? Talvez por isso seja tão difícil legislar sobre enriquecimento ilícito/injustificado, embora haja questões de constitucionalidade que devem ser salvaguardadas (Transparência e integridade). Se for desta vez que a lei passa, podemos esperar que não vai ser mais um daqueles procedimentos burocráticos que fazem parte do "lado A" da corrupção? (Eduardo Sá, "Os rezingões da vida").











21/04/21

Negação e crítica

Memorial do Holodomor em Kiev, Ucrânia


A negação é um mecanismo psicológico de defesa pelo qual o indivíduo, de forma inconsciente, não quer tomar conhecimento de algum desejo, fantasia, pensamento ou sentimento. 
Anna Freud estudou os vários mecanismos de defesa sendo a negação um mecanismo da mente imatura porque entra em conflito com a capacidade de aprender e lidar com a realidade. 
Quando a realidade é demasiado perturbadora, a negação é um recurso do EU que tem como função tornar possível aceitar a realidade. 
No entanto, a negação é importante na nossa vida psicológica, porque permite ajustamento à realidade, negando-a, nas mais diversas situações: em geral, ninguém se considera corrupto, abusador, criminoso. Da mesma forma, que começamos por negar uma doença grave, a morte de um ente querido...

Porém, também é um mecanismo que levanta por vezes controvérsia porque origina, facilmente, “teorias” dogmáticas que têm que ser aceites por todos, sem pestanejar e  quem mantenha uma posição crítica é classificado como estando "em negação".*
A negação, nos últimos tempos é usada por tudo e por nada, na política, na história, na ciência... O rótulo negacionista tem sido ligado ao clima, às posições fracturantes, às vacinas, à história dos países... 
Parece haver um negacionismo bom identificado com progresso, evolução, defendido pela chamada esquerda.
Alguns exemplos deste negacionismo bom:
- Negar as purgas, os assassinatos, a repressão, o culto de personalidade de Estaline;
- Negar o que se passou na revolução cultural de Mao-Tsé-Tung...
É por isso que 
- Rita Rato nunca ouviu falar do gulag;
- Bernardino Soares não admite que a Coreia do Norte seja uma ditadura;
- F. Louçã ignora o Holodomor, a grande fome na Ucrânia **;
- Muita gente ostenta garbosamente a t-shirt com a efígie de Che Guevara; 
- Maduro na Venezuela não é ditador;
- etc.
Serão negacionistas? 

Pois é. Pretendem que haja um negacionismo chique, encoberto e bom, entre o carneirismo e o modismo, que é apenas um método de suprimir outras perspectivas alternativas.
Negacionismo, é uma palavra importante para definir pensamentos e sentimentos que deve ser utilizada com propriedade e em relação a todas as situações. 

Muitas posições críticas são apresentadas como negacionismo. Mas ser crítico não é ser negacionista. É fundamental que exista contraditório e diversidade de pontos de vista, a humildade de não saber tudo mesmo quando se trata de ciência – o caso das vacinas para a covid -19 é um bom exemplo.

Não há crimes contra a humanidade não aceitáveis e outros mais ou menos aceitáveis e ignorados propositadamente.
Não há negacionismo chique e bom nem negacionismo erróneo e malvado.***
O negacionismo é sempre uma maneira de negar a realidade para escapar a uma verdade desconfortável.
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* O teste da refutabilidade, é a propriedade de uma asserção, ideia, hipótese ou teoria poder ser mostrada falsa. (Karl Popper)
**Ou o  papel de Trosky e do Exército vermelho na repressão de Cronstadt.
*** Na verdade a indústria do tabaco como a do açúcar nos EUA têm sido acusadas de terem o objetivo (não declarado) de semear dúvidas sobre os perigos para a saúde do tabaco e do açúcar.
Também são acusadas empresas petrolíferas de pagarem estudos desfavoráveis à tese das alterações climáticas...
Por outro lado, não se pode esquecer quem  financia os movimentos "do bem" como as campanhas das alterações climáticas antropogénicas, o negócio do carbono, as campanhas, um pouco por todo o lado, a do que "é verde é bom", o aproveitamento dos movimentos sociais por parte de Ongs, Fundações, especuladores, empresas internacionais ou nacionais... 
A manipulação, também chamada activismo, muitas vezes activismo violento, é o objectivo daquelas mas também destas  organizações, como refere o ex-presidente da Greenpeace, Patrick Moore "Moore observou como as empresas “verdes” parasitam os contribuintes através de regulamentos favoráveis e subsídios justificados pelas alegadas ameaças das “alterações climáticas”, enquanto desfrutam de protecção propagandística de toda a comunicação social."












Ouvir...

 


OUVI A VOSSA SOLENE MELODIA, TUBOS DE ÓRGÃO



                      Ouvi a vossa solene melodia, tubos de órgão, no passado domingo
                                     de manhã ao passar pela igreja,
                      Ventos de Outono, ao atravessar dos bosques, ao crepúsculo, ouvi os
                                     vossos longos suspiros prolongando-se lá no alto, tão tristes,
                      Ouvi o perfeito tenor italiano cantando na ópera, ouvi o soprano
                                      cantando no meio do quarteto;
                      Coração do meu amor! a ti também te ouvi murmurar baixinho
                                       através de um dos pulsos à volta da minha cabeça:
                      Ouvi o teu pulso, ontem à noite, quando tudo estava em silêncio,
                                       soar como pequenos sinos ao meu ouvido.


Walt Whitman, Folhas de erva, p.104

 

 

09/04/21

Uma viagem espacial




O melhor disto tudo é que, se quisermos,  podemos  viajar pelo espaço e pelo tempo. Faça chuva, faça sol, haja pandemia ou doenças, a vida é sonhar e imaginar um mundo onde a realidade é igual à fantasia. 
Assim, podemos fazer muitas coisas maravilhosas, ao mesmo tempo, como estar na terra, viajar no passado e no regresso ao futuro  e ao mesmo tempo viajar pelos mais divertidos  sítios do espaço.  
Qualquer tempo é bom para viajarmos sem tempo. No Natal ou no Verão podemos viajar por onde quisermos, sem frio e sem calor, no espaço e tempo em que só podemos ser felizes. Seja tempo antes da covid ou depois da covid, podemos viajar  pelas alegrias e tristezas que são tempo em que nos lembramos dos tempos antes de nós e fazemos o tempo de agora.

- Avô, brincas comigo ?
A nave espacial já estava preparada e pronta para descolar a qualquer momento.
A minha primeira dificuldade é entrar na nave porque as dobradiças dos joelhos já não funcionam com aquela elasticidade de outros tempos mas com jeito consegue-se um lugar  desde que sentado com as pernas "à chinês".

Para descolar, o comandante liga os botões e começa a contagem, que neste caso, não é decrescente. A nossa nave descola aos 10. Então vamos descolar: um dois três ... nove, dez.  Vrooooooomm!
E lá vai a caminho do espaço. Silêncio. Silêncio apenas interrompido pela turbulência que se faz sentir na nave, por vezes grande, tum, tum, toc, toc... e os asteróides são um perigo para a nevegação... 
- Vamos cair, vamos cair... 
No painel de bordo acendem  os botões vermelhos de perigo... 
- Cuidado! Cuidado!
- Já passou.
O comandante tem hoje um destino. Deixa cá ver a carta espacial. Indica Parque Jurássico e... Caraíbas...
No Parque podemos ver o raptor, o pterodathil, brontosaurus, tyrannosaurus...

E continuamos pelo espaço. De um dos lados da nave podemos ver pelas escotilhas a terra azul e do outro lado a lua cheia e branca.
A navegação corre bem apesar de alguns solavancos que a fazem tremer e, às vezes, parece que vai desfazer-se... Mas o perigo acaba por passar.
Porém, o problema maior é aterrar. O comandante da nave quer continuar no espaço e não há maneira de decidir que já é tempo de voltar à terra.







Inclusão 2


Símbolo de acessibilidade proposto pela ONU



1. Felizmente, neste tempo que levo de vida, vi acontecer muitas mudanças inclusivas na sociedade: na escola, na segurança social, nas acessibilidades, nos comportamentos das pessoas. Participei em algumas dessas mudanças.

Então, desde há muito aprendi que a inclusão não é uma obra acabada mas um processo em construção a cada momento. 

A inclusão é uma atitude necessária da vida, como a liberdade, a democracia e a justiça. Faz parte de qualquer organização social democrática decente. 

 

Esta mudança social tem vindo a fazer-se com a evolução da inclusão concreta na educação com a metodologia "desenho universal de aprendizagem" (UDL),   no trabalho, na melhoria das acessibilidades, na linguagem que respeita as diferenças, não seja estigmatizante, adequada à vida das pessoas.

Esta mudança social diz respeito a todos. Sim, todos precisamos de inclusão e todos precisamos de linguagem inclusiva.


2. Sou do tempo em que a educação escolar era feita em escolas separadas para  rapazes e raparigas. Foi por isso que a coeducação teve importância na eliminação de muitos dos fenómenos que podiam dar vantagens a uns ou a outros.  Os mundos separados da educação, porém, eram compensados pela convivência extra escolar, nas famílias, nos jogos, no tempo de brincadeira que era todo o tempo em que não estávamos na escola. Qualquer défice que pudesse existir na educação formal seria ultrapassado na educação informal.

Ou seja, para quem tinha a ilusão de que a coeducação podia resolver o problema dos  estereótipos, do bullying, da violência doméstica ou outra, percebeu, como prova a realidade diária das nossas escolas, que  não é assim tão simples...

Muitos comportamentos têm a ver com o desenvolvimento psicológico como, por exemplo, quando raparigas e rapazes têm tendência a criar grupos do mesmo sexo. O contrário é que seria estranho.

 

3. Sou do tempo do livro único*, que podia ter aspectos vantajosos como o económico para o estado e para as famílias, mas muitas desvantagens. Hoje não teria grande sentido haver manuais escolares aprovados centralmente que divulgassem estereótipos, estatutos e papéis sexuais baseados na diferenciação sexual. 

Mas pelos vistos também este não é um factor que, isoladamente, vai resolver o problema do respeito pelas diferenças.


4. Sou do tempo em que havia no Ministério da Qualidade de vida, a Direcção de Serviços de Orientação de Consumos, o Gabinete do Consumidor, onde ficámos a perceber que o perigo vinha dessa "orientação" e do papel que a psicologia e em particular o condicionamento operante (A manipulação dos espíritos) tem nos nossos comportamentos. Tenho a agradecer a Ernesto Melo e Castro, ter alertado para isso. Tudo o que se podia fazer era estudar e apresentar dados objectivos sobre comportamentos de consumo e dar a possibilidade a cada um de pensar e tirar as suas conclusões. Foi assim que se tratou, por exemplo, o alcoolismo, o tabagismo, a publicidade, o consumo... com Beja Santos, Manuel Barão da Cunha. 

5. Sou do tempo em que na Direcção-geral da segurança social/acção social se procurava a integração e a inclusão das pessoas com deficiências e doenças mentais e criar respostas mais humanizadas para os diversos níveis etários, com base em critérios vindos das várias disciplinas que podiam favorecer aquela perspectiva: psicologia, pedagogia, geriatria, arquitectura... Passei grande parte da minha vida profissional a defender a inclusão educativa das pessoas com deficiência ou doença, ou dificuldades de aprendizagem, as necessidades educativas especiais. 
Na equipa de Maria Helena Cadete, participei no estudo e na criação de legislação que permitiu à pessoa com deficiência ter respostas organizadas, ou seja, legislação que lhes possibilitou essa inclusão desde as deficiências mais ligeiras às mais profundas, como a criação dos CAO (Centro de apoio ocupacional), ou em trabalhos sobre as acessibilidades e equipamentos para crianças com deficiências sensoriais e mentais. 
Todo este trabalho ficou bem evidenciado no Ano internacional das pessoas com deficiência, onde colaborei no estudo do apoio ao deficiente mental profundo.
Com Fernanda Infante, colaborei no estudo das famílias monoparentais (até então, a segurança social interessava-se principalmente com as designadas "mães solteiras") e no estudo de "Famílias reconstituídas" (antes nem designação havia para os casos de recasamentos em que havia filhos, etc.)...

6.  Sou do tempo em que a inclusão foi e é um trabalho diário nas escolas ainda mais após a Declaração de Salamanca (10 de Junho de 1994), sobre princípios, políticas e práticas na área das necessidades educativas especiais.

 

7. Faz sentido, por outro lado, que sejam introduzidas alterações na abordagem de assuntos que dizem respeito a essas diferenças, como acontece com as revisões do DSM (Manual de diagnóstico e estatística das perturbações mentais) como por exemplo  com a classificação das deficiências ou das "perturbações" mentais que para muita gente e em algumas traduções continuam a ser designadas como "transtornos" ou "distúrbios".

8. E tudo isto era e é positivo, inclusivo. As diferenças eram vistas como um enriquecimento, como espelho de nós próprios, como nossas, que cada um de nós é diferente de todos os outros mas a sua referência porque como dizia Amaral Dias "quanto mais me vejo menos me conheço", e em qualquer altura, com mais ou menos idade, faria parte de um dos grupos com esta ou aquela necessidade especial.

 

9.  Então é necessário trabalhar pela inclusão:

- para não continuarmos a construir casas e equipamentos sociais sem acessibilidades mesmo que a lei obrigue a fazê-lo;

- criar cidades para todas as pessoas, mais importante do que novos símbolos para acessibilidades;

-  mudar os métodos de ensino/aprendizagem dando oportunidades educativas aos alunos  de acordo com as necessidades de cada um;

- criar acessibilidades a nível do currículo; 

- utilizar a informática como instrumento importante no processo ensino/ prendizagem;

- Utilizar uma linguagem inclusiva o que não quer dizer neutra porque a inclusão não é neutra nem a linguagem é neutra. Nunca o foi nem será. E não será uma qualquer geringonça gramatical que tornará a linguagem neutra. 

A linguagem não é neutra, felizmente, e a inclusão é outra coisa.

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* Sobre os  manuais escolares e livro único.









 


 

25/03/21

O neutro falso


                            

 

1. Sou do tempo em que a Comissão da condição feminina  publicava textos sobre isso mesmo, a condição feminina, do tempo em que os estereótipos sexuais marcavam excessivamente a cultura e, tão importante ou mais importante do que isso, um tempo em que eram as condições de vida que marcavam o nosso quotidiano de homens, mulheres, raparigas e  rapazes.  O acesso à educação e ao mundo do trabalho influenciou e influencia a modificação das relações entre homens e mulheres.

Tem sido uma lenta e necessária mudança para que todos possamos estar em condições de igualdade nas oportunidades que nos são dadas, à partida,  numa  sociedade  em que não pode haver ignorados ou excluídos.

 

2. Dos vários trabalhos que começaram a colocar este tipo de questões, podemos referir dois: Ivone Leal escreveu “O masculino e o feminino em literatura infantil, de 1982, sobre a literatura infantil tão marcada por estereótipos sexuais, pelo sistema de crenças e valores que por sua vez influenciam o nosso presente e  futuro.

O estudo  de Maria Isabel Barreno, O falso neutro – um estudo sobre a discriminação sexual no ensino,  de 1985, evidencia o funcionamento do ensino no uso destas diferenças nos planos de estudo, programas e livros. Embora a igualdade esteja constitucionalmente garantida acontece que na prática o feminino era desvalorizado.
Por isso, impunha-se a necessidade de alterar as imagens transmitidas pelos diversos instrumentos de gestão educativa: planos, programas, manuais escolares, etc ....

3. Surg
e agora, embora não inesperadamente, a agenda ideológica politicamente correcta dos "guiões da linguagem" dita neutra e dita inclusiva. 

Não se trata de evolução social mas tão só de ideologia  que pretende alterar e desconstruir os fundamentos da nossa vida social. E, ao mesmo tempo, de excluir os outros que passaram a ser acusados de fóbicos.

É-nos exigida uma linguagem  neutra e inclusiva... Mas não é neutra nem inclusiva porque desde  logo é uma linguagem imposta que exclui todos os que não se revêem nessa ditadura da linguagem. 

Além disso, muitas vezes é ridícula, como no caso dos "camarados e camaradas", no uso da @ em vez do "a" ou do "o", e, como se trata de uma coisa impronunciável, do uso de "e" em vez do "a" e do "o", etc.

Não faz qualquer sentido, nem tem qualquer fundamento, como lembrava Francisco José Viegas que referia Claude Lévi-Strauss: “o género gramatical não tem a ver com o género natural”.

A imposição de uma linguagem é uma tendência que atinge instituições como a ONU, Comissão Europeia, Conselho económico e social (CES), algumas escolas...

 

4. Foi assim que passámos do falso neutro ao neutro falso. O neutro falso é ditatorial, é violência e exclusão de toda a gente. E eu, que defendo a inclusão, não sou neutro e, portanto, sou um dos excluídos.

 


 







19/03/21

Quem te mandou meter nisto, José?


Georges Moustaki - Joseph (Mon Vieux Joseph)

Certamente, como qualquer um de nós, tinhas um script para a tua vida, em grande parte inconsciente, que a tua família desenhou para ti, a tua herança cultural e social, as informações dos teus antepassados, tinhas o teu ambiente, tinhas a tua profissão. Podias ter continuado a ser o que eras. Por que não o fizeste? Por que houve Alguém que trocou esse teu script?

Ser pai é difícil e uma grande trapalhada e é por isso, talvez, que neste tempo de modernices e facilidades  querem que a gente deixe de ser pai para ser progenitor.

Mas o exemplo que deste é extraordinário. Muito à frente. Sem a tua atitude, a tua história, a nossa História, seria diferente. E tudo vem desse gesto sereno e bondoso de ser pai.

Fizeste o que tinha que ser feito: proteger a tua família, acompanhar Maria na educação do vosso filho e, como sempre, tanta coisa foi necessário deixar pra trás. Mesmo para  dois não é fácil educar. Ter que mudar de terra, ter que fugir dos narcisistas que querem sempre dominar o mundo e não querem que ninguém lhes faça sombra...

Por que é que não disseste não? Só podias ser muito boa pessoa. Jesus deve ter aprendido imenso contigo. Porque também ele era uma óptima pessoa mas precisava de ser educado e, como diz a psicologia, até  aos dois anos foi necessário criar os alicerces da vida, foi preciso que o teu filho aprendesse a gatinhar, a andar e a falar. Dos três aos sete anos foi preciso aprender a falar com desenvoltura, aprender a ler e a escrever. E depois deves ter apanhado o impacto de um adolescente que não devia ser fácil de aturar.
Apoiaste Maria nestas fases todas, difíceis, todas estranhas e diferentes, como quando, certo dia, Ele fugiu e foi discutir com os sábios do templo.

Foi este o teu novo script: sobressalto e algum sofrimento quando, na comunidade em que vivias, ouvias falar de que o teu bom menino também era um pouco estranho e dizia coisas estranhas. E também muita alegria por seres o Seu pai.




18/03/21

Inclusão




A inclusão é uma palavra muito bonita que significa práticas e comportamentos ainda mais bonitos.
Acontece que, ultimamente, a inclusão tem sido completamente viciada principalmente por aquilo que alguns têm designado por “Guiões de linguagem inclusiva” que mais não são do que orientações subjectivas, manipulação ou censura.

A manipulação a que estamos sujeitos, tanto pode estar na orientação de consumos, com a publicidade, como nos guiões de orientação política sobre o que devemos ou não devemos comer ou beber, como proibir o consumo de leite achocolatado nas escolas, como quer o PAN, ou proibir o consumo de carne de vaca na universidade, como propõe o sr. Reitor da Universidade de Coimbra. 

Mais grave ainda, chegámos a um tempo em que a manipulação e a censura da expressão livre vem em “guiões de linguagem inclusiva”. Este embuste não inclui ninguém, pelo contrário, gera formas de desorientação, manipulação e censura sobre quem pensa a inclusão de outra forma. O condicionamento das pessoas é perigoso, dissimulado, propositado, instrumental. 

J. M. Fernandes, chama-lhe “a estupidez sem limites dos polícias da linguagem”, a propósito da “linguagem neutra e inclusiva” que o Conselho económico e social (CES) quer introduzir na sua prática. (Observador)
Isto é tudo menos neutro e inclusivo. 

Francisco José Viegas também refere que “a novilíngua veio para ficar, como arsénico que tudo empobrece, desejosa de regenerar a espécie humana e de fomentar a ignorância". (A origem das espécies)

A inclusão é fundamental para cada um de nós. O que acontece é que estes guiões são falsamente inclusivos. 
A linguagem, ao longo do tempo, pode e deve ser ajustada, melhorada,  como reflexo da evolução da vida das pessoas e da evolução científica. Nos vários sectores de actividade importa que haja uma linguagem comum como acontece com as associações profissionais desses sectores. Mas não há inocência na provocação do caos e, no fundo, na desorientação das pessoas.

Partilhei no facebook o que Helena Matos escreveu sobre estes “guiões de linguagem inclusiva”, (Observador)
"Como o guião da Universidade de Manchester que impede os funcionários e professores daquela universidade de usarem termos como mãe e pai, idosos, pensionistas, jovens e mulher/marido!"
"No Guia de Comunicação Inclusiva da UE já se tinha posto o casamento ao nível do jogo da bisca com a recomendação de que se usasse “parceiro/parceira” em vez de “marido/mulher“."
"Estes guiões de linguagem apresentada como igualitária e inclusiva estão a transformar as nossas vidas numa versão daqueles pesadelos em que gritamos por ajuda mas não conseguimos articular qualquer som: eles proíbem-nos as palavras que nomeavam o nosso mundo."

"Em vez de “mãe”, “pai” ou “pais”, os alunos da Grace Church School, em Manhattan, nos Estados Unidos, vão passar a dizer “adultos” ou “família”. Em vez de “rapazes e raparigas” ou “senhoras e senhores”, passam a ser utilizados os termos “pessoas” ou “amigos”." (SIC e aqui)

São guiões despóticos que me tornam cada vez mais excluído e desadaptado, embora tenha alguma vaidade e orgulho nisso.
E, quer gostem ou não, proíbam ou não, serei, eternamente, filho, pai e avõ...


Até para a semana, com muita saúde.


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12/03/21

Da utopia à distopia




1. Viver num país livre é também viver essa pequena grande diferença que existe entre os países: os que podem e os que não podem comemorar o que quiserem.
Poder comemorar é uma manifestação normal de qualquer pessoa, grupo, religião, partido... sobre o que se quiser.
O que nós sabemos é que nos países democráticos podemos fazê-lo e nos países de partido único ou nas ditaduras, onde a oposição é perseguida e dizimada, isso não é possível.
Todos os homens têm direito à liberdade. E esta não seria apenas uma utopia para enganar os cidadãos.
Há lugares utópicos onde podemos viver e lugares distópicos onde nos controlam a vida: qualquer movimento, qualquer pensamento, qualquer manifestação escrita, qualquer palavra, qualquer comemoração.

2. Há dias, Portugal acordou com bandeirolas por todo o lado. O partido comunista português comemorava então o centésimo aniversário de existência. 
Tem liberdade para o fazer. Coisa que não é possível a outros, como acontece nos países do socialismo real. 

3. E, por isso, esta comemoração é da ordem da distopia, onde não há nada de novo e que não saibamos há muito tempo.
A publicação d' O Capital de Marx é de 1867 e o Manifesto do partido comunista, de Marx e Engels, de 1884, que no parágrafo final para além do jargão “Proletários de todos os países, uni-vos” refere também que “Os comunistas não ocultam as suas opiniões e objetivos. Declaram abertamente que os seus fins só serão alcançados com o derrube violento da ordem social existente."
Entre um e outro, Leão XIII escreveu, em 1878, a carta encíclica “Apostólica muneris” e posteriormente, em1891, a “ Rerum novarum".
Mais tarde, já com os efeitos nefastos e dolorosos no terreno, em 1937, Pio XI escreveu a "Divini redemptoris", "sobre o comunismo ateu". *

4. Para a "Rerum novarum", o capital e o trabalho têm interesses harmónicos e não antagónicos e “O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado...
Elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital. A concórdia traz consigo a ordem e a beleza; ao contrário, de um conflito perpétuo só podem resultar confusão e lutas selvagens”. (pag 22) 

5 A distopia (John Stuart Mill, 1868) é caracterizada pelo controle opressivo de toda uma sociedade, pela desagregação social, ou por condições económicas, populacionais ou ambientais degradadas. 
O século 20 foi marcado por mudanças tecnológica, científicas e sociais, com duas guerras mundiais sangrentas e regimes totalitários violentos. 
1984, de George Orwell, e Admirável Mundo novo, de A. Huxley, mostram-nos como se tem caminhado na direção errada.
Porém, às “fascinadoras promessas” socialistas como lhe chama Pio XI, seguiram-se os "dolorosos efeitos" que, como sabemos, se fizeram sentir por todo lado a começar pela Rússia e pelo México.

6. Em 25 de Abril de 1974, a liberdade trouxe toda a esperança num mundo diferente, utópico, onde todos podemos comemorar tudo.



Até para a semana com muita saúde.



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* O assunto é tratado em outras cartas encíclicas, como a "Quadragesimo anno" (1931), de Pio XI, a "Mater et Magistra" (1961), de João XXIII...