08/03/16

"A liberdade tem sempre um preço"

Li o livro Alentejo prometido, de Henrique Raposo. Podemos dizer que é uma história sobre identidade e identificação. E também sobre o permitido e o proibido, de dentro e de fora, isto é, sobre o eu e sobre a sociedade que não compreende como é possível haver quem não tenha o espírito de pertença que HR manifesta não ter nestas “histórias familiares e pessoais”.
Quem está fora é de tal modo questionado pela novidade do outro, pelo pensamento do outro, que não só não aceita este sentimento de desligamento das raízes de que fala o livro como o quer proibir para que outros não o possam ler. É, por isso, que a liberdade tem sempre um preço. 
Muito do que ali está escrito não é apenas de um Alentejo que existiu mas de todo um país que, durante séculos, viveu esta realidade. Os relacionamentos entre rapazes e raparigas eram assim, os bailes eram assim como HR descreve, até ao aparecimento do gira-discos que permitiu a realização de bailes e festas particulares... HR estabelece algumas semelhanças e diferenças entre o sul e o norte e,  na verdade, havia no país antigo e há no país actual muitas diferenças que HR prova com estatísticas, como é o caso do suicídio, da emigração, do problema da água e construção de barragens, da violência doméstica que existe tanto no norte como no sul mas em que o feminicídio é praticamente residual no sul.
Os comportamentos oscilam entre o permitido e o proibido. Os critérios do permitido e do proibido variam de época para época e de sociedade para sociedade. Houve tempo em que era indecente que a mulher mostrasse as pernas, mas o decote podia ser generoso. Como diz Umberto Eco (1975): “Em Citânia: tem mini-saia – é uma rapariga leviana. Em Milão: tem mini-saia - é uma rapariga moderna. Em Paris: tem mini-saia é uma rapariga. Em Hamburgo no Eros: tem mini-saia - se calhar é um rapaz”.
Mas quem escreve assim, por certo ama aquela terra, como ama aquela família, em especial as mulheres daquela família: “A história um dia fará justiça a esta geração de mulheres que criou o conceito de criança entre o fim da roda dos expostos (final do séc. XIX) e o advento da pílula. E o que é mais espantoso é que elas iniciaram esta revolução mental contra a miséria, contra os elementos e, sobretudo, contra a cultura marialva dos maridos.”
E também porque, desesperadamente, procura motivações que justifiquem uma identidade, começando por mentir a si próprio "o Alentejo dos meus avós e pais é a minha terra". Sofre do que chama o “complexo do desenraizado”, este sentimento de não pertença a um lugar geográfico determinado. 
Mas a identidade está nas memórias da infância e essas são aquilo que nem HR nem ninguém pode afastar porque o reprimido sempre aparecerá em qualquer livro escrito ou da vida, chame-se ou não Alentejo prometido.
Não será assim noutros locais, com todos nós? Não foi Sócrates, o filósofo, que disse: "Não sou nem ateniense nem grego sou um cidadão do mundo" ?
Além disso, nem todos têm essa facilidade de identificação como parecem ter os censores que querem proibir que o livro seja divulgado.
Há um poder, da tradição, do silêncio, da imitação, do controle, da política, neste caso da dita esquerda, do dinheiro, que como qualquer poder "reprime e proibe e leva ao aparecimento e produção de comportamentos na relação do indivíduo consigo próprio, que é função de certas maneiras de sentir, de agir e de pensar que lhe são inculcadas através dos mecanismos identificatórios". Esta sociedade não admite que se toque na estrutura formal com que os seus elementos se identificam. Como se houvesse um modelo para servir a todos, do tipo pronto-a-vestir, em que só se pode permitir a igualdade psicológica, para todo o sempre.
O desenraizamento, a não pertença, devido à migração por se querer uma vida económica melhor e por rejeitar determinados atavismos,  tem um preço: o vazio da não pertença.
É por isso que é tão importante divergir e, ao mesmo tempo, convergir e valorizar as memórias vinculativas positivas do passado, ou mesmo as de sofrimento, por um futuro melhor.
HR deixa algumas notas de esperança. A educação e as novas tecnologias estão a contribuir, definitivamente, para que as crianças das últimas gerações possam ter este futuro.

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