06/09/10

Verdade: "a que estado temos chegado"

... "O Estado da Índia ganhou-se com muita verdade, com muita fidelidade, com muita liberalidade, com muito valor e com muito esforço. Ora vêde se o estado em que está não é pelo contrário destas cousas! Aqui me cai a propósito um dito muito avisado dum rei de Cochim, o qual vendo ir aquele Estado empiorando, disse «que logo êle começara a descair, tanto que de Portugal, deixaram de vir estas três cousas: verdade, espadas largas e portuguêses d'ouro».
Ora quero mostrar a Vossas Mercês como de falta destas cousas nasceram todos os males da Índia. Vamos à primeira, que é verdade: as verdades com que este Estado se ganhou foram viso-reis embarcados, armas vistidas, fazendo guerra aos imigos, acrescentando o património real e enriquecendo o Estado e os vassalos. E se não,  vêde como estêve a Índia no tempo dos que seguiram estas verdades, que foram D. Francisco
d' Almeida, Afonso d' Albuquerque e todos os mais viso-reis e governadores até Jorge Cabral, e ainda quero dizer até D. Constantino; mas depois que se deixou de usar desta verdade, e que ela se perdeu, aconteceu aos viso-reis e governadores aquilo que a Aníbal, que enquanto andou com as armas vistidas polos exércitos dormindo nos campos em um couro de boi, que era a sua cama mimosa, conquistou tôda Espanha e Itália, e ainda fôra senhor de Roma e do mundo todo, se seguira sempre esta verdade; mas, depois que a perdeu e se recolheu às delícias de  Cápua, e despiu as armas, logo tornou a perder quanto em tantos anos tinha ganhado.
Assim os viso-reis e governadores da Índia: enquanto seguiram esta verdade, foi ela próspera e temida; mas, depois que se ela perdeu e que dispiram as armas e se deixaram de embarcar, e se recolheram às delícias da cidade de Goa, e se fizeram veadores da Fazenda e presidentes da Relação, logo a Índia foi de pernas acima, e nós todos nos acovardamos e nos perderam tanto os imigos o respeito que aquilo que nós primeiro faziamos, que era sustentarmo-nos de prêsas suas, o fazem êles agora, que se sustentam de prêsas nossas.(Antologia do Humor Português)

Assim escrevia Diogo do Couto (1542-1616)  no "Soldado prático".
Por escrever com preocupação pela veracidade, teve o reflexo na sua obra, "incómoda para largos sectores das altas hierarquias. Com efeito: a sua Decada 6ª ardeu na tipografia; a 8ª e a 9ª foram-lhe roubadas; a 11ª extraviou-se. Das 9 Décadas que escreveu, só três conseguiram ser integralmente publicadas."(Antologia do Humor Português)

Foi sempre assim. Questões de mera gestão!

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