

Não posso adiar o amor
Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração.
António Ramos Rosa, Viagem Através de uma Nebulosa
1. Em 31 de Outubro comemora-se o Halloween ou dia das bruxas que é também conhecido por “véspera do dia de todos os santos”, como a origem da palavra - “All Hallows Eve” - dá a entender.
Há várias histórias sobre esta celebração. Uma delas conta-nos que a origem é uma festa celta (Samhain) que tinha lugar quando chegava o inverno, com o frio e com a natureza adormecida, depois do tempo de fertilidade do Verão, e havia que manter a esperança na renovação. Era uma festa com muita comida e diversão. Nesta festa os celtas recordavam os antepassados... e acendiam o “primeiro fogo”, que celebrava a vida. (A história do Dia de Todos os Santos. Que quase morreu com o Halloween)
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(1) Vítor Feytor Pinto, 100 entradas para um mundo melhor, Capítulo “Morte - A vida não acaba, apenas se transforma”, Lucerna, pg 148 -151
(3) Nos Estados unidos, nesta noite, as crianças mascaram-se de criaturas assustadoras – como bruxas, fantasmas ou zombies, por exemplo – e também elas tocam à campainha dos vizinhos em busca de comida. Dizem “doçura ou travessura” e os vizinhos decidem se abrem a porta. Mas se não o fizerem com recompensas (leiam-se doces), habilitam-se a ver ovos atirados contra a janela na manhã seguinte. (A história do Dia de Todos os Santos. Que quase morreu com o Halloween)
A origem das tradições pagãs e cristãs do Halloween pouco tem a ver com as actuais celebrações. Como em outras festas, também nesta o consumismo tem desvirtuado a sua origem e originalidade. No caso do H., segundo Bruno Bethelleim, o desvirtuamento tem consequências sobretudo na ambivalência que está presente nesta festa. As crianças por um dia também podem assumir o papel do adulto e podem castigar o adulto com a "travessura" se não cumprir com a tradição de oferecer a "doçura" respectiva.
Como sabemos a ambivalência consiste em sentimentos de amor e ódio em relação a uma pessoa. Praticamente todas as pessoas já experimentaram esse conflito de sentimentos. O objecto do seu afecto e desafecto pode ser um colega de trabalho, um namorado ou até um professor ou os pais.
A importância desta festa infantil é a possibilidade de a criança compreender que mesmo ao mostrar o lado mais sombrio da vida pode ser aceite. Pode ameaçar com travessura se não lhe derem uma doçura. Os adultos devem entrar no jogo fazendo de conta que estão muito assustados pelos seus disfarces (Bruno Bettelheim, Bons Pais - o sucesso na educação dos filhos, pag. 628).
Passa-se o mesmo quando a criança nas brincadeiras connosco agita um brinquedo monstruoso, mesmo que pequeno mas enorme na realidade ou feroz, imitando um som assustador - Grrrrrrrrr ... Claro que o adulto deve mostrar medo com tão veemente susto. Se não se assusta acaba a brincadeira...
Infelizmente, como diz Bruno Bettelheim, o que aconteceu com esta festa foi a perda deste significado quando passou a ser uma festa em que também os adultos passaram a usar disfarces e a assustarem-se uns aos outros, a brincarem uns com os outros (não digo tanto, como BB, de que foram crianças que não tiveram brincadeiras quando eram crianças... ) ou pior, a assustarem as crianças.
Então a história ficou de pernas para o ar e passaram a ser os adultos a assustar as crianças havendo casos graves com crianças muito pequenas (basta pesquisar na internet).
A tradição das doçuras e travessuras deixou de existir e o objectivo é apenas fazer o disfarce mais horrível e assustar as crianças em vez de serem estas a amedrontar os adultos.
A festa também se estragou quando os adultos passaram a não ser confiáveis por oferecerem “doçuras” que fazem mal às crianças ou podem ser perigosas (basta pesquisar na internet)...
A perspectiva positiva do desenvolvimento psicológico, do direito ao afecto e dos bons tratos que as crianças necessitam, mostra como ainda estamos longe da protecção que devem merecer, apesar da evolução legislativa, social e cultural.
Ao longo da história, as crianças têm sido vítimas de toda a espécie de maus tratos que vão do infanticídio até às mais vis formas de tráfico humano. A história da infância é um longo caminho de violência contra as crianças (De Mause).
A pedofilia e o incesto fazem parte dessa história de maus tratos mesmo quando as instituições que deviam ter um papel de protecção, como a família, igreja e escola, elas próprias foram e são também violentadoras das crianças.
Em 2019, a conferência dos bispos de França propôs ao senador Jean-Michel Sauvé criar uma comissão sobre a dimensão do fenómeno dos abusos sexuais. Nascia, assim, a Comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja (Ciase). (1)
Após dois anos e meio de trabalho, a Comissão publicou o relatório em que foram investigados os casos de abuso ao longo de um período de 70 anos, entre 1950 – 2020.
Os resultados (2) são uma estimativa baseada no censo e na análise dos arquivos (Igreja, justiça, polícia judiciária e imprensa) e nos testemunhos recebidos pela Comissão.
Refere o relatório que foram abusadas um total de 216 mil pessoas (com uma margem de erro de 50 mil). Se forem incluídas as agressões cometidas por leigos esta estimativa sobe para 330 mil pessoas.
Infelizmente os números dos abusos sexuais são ainda mais perturbadores se pensarmos que, em toda a sociedade francesa, cinco milhões e meio de pessoas (14,5% das mulheres e 6,4% dos homens) haviam sofrido violência sexual antes dos 18 anos de idade.
As famílias e amigos ainda são os principais contextos dos abusos, mas a prevalência de agressões na Igreja católica continua alta, mesmo em tempos recentes.
Chocante é também a indiferença com que estes casos foram olhados não só dentro da Igreja mas na sociedade. A pergunta é: como foi possível? Certamente teve que haver muita gente a olhar para o lado para que as coisas fossem acontecendo sem serem denunciadas. Mesmo que a denúncia envolva complexidade, sofrimento, e medo e, por isso, tenda a ser protelada, é difícil compreender como foi possível silenciar os abusos durante tanto tempo.
A iniciativa tomada pela Igreja relativamente a este assunto é também de salientar, no sentido de terminar os abusos mas também de prevenir e proteger as crianças desta forma de violência.
O século XX foi considerado a “era da criança” (3). É, por isso, tempo de parar os abusos e a violência contra as crianças. Mas se não é possível pôr termo à maldade humana, é preciso que toda a sociedade não fique indiferente à "dor invisível" das crianças abusadas (Barudy). Elas merecem um tempo novo na sua história, o tempo dos bons tratos.
Até para a semana.
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(1) Prisca Borrel, "Église et pédophilie: oser témoigner", Le cercle Psy, nº 35, pags 74-75
(2) São os resultados referidos pela comunicação social, p. ex. em: O pesar do Papa pelo Relatório sobre os abusos na Igreja na França.
(3) A Origem dos Maus-Tratos: Revisão Sobre a Evolução Histórica das Perceções de Criança e Maus-Tratos.
Cheek to Cheek: Um dos duetos de Tony Bennett e Lady Gaga. É muito bonita esta relação, quando, a partir de 2014, juntos gravaram um álbum de standards com o nome de Cheeck to Cheeck numa altura em que Bennett já revelava sintomas da doença de Alzheimer com todas as dúvidas que se colocavam em relação ao resultado do projecto.
Segundo a sua neurologista (Gayatri Devi, neurologista no Lenox Hill Hospital em Manhattan responsável pelo diagnóstico de Tony), “aos 94 anos, ele está a fazer muitas coisas que várias pessoas com demência não conseguem fazer”. “Ele é mesmo um símbolo de esperança para alguém que sofre de uma perturbação cognitiva”, continua a médica, que nos últimos anos encorajou Bennett a manter-se "ativo, cantando e atuando ao vivo até que tal fosse possível, “uma vez que estimulava o seu cérebro de uma forma significativa”...” (Observador)
T. Bennett pode ser um exemplo de como a música tem um papel fundamental na vida das pessoas mesmo quando se é atingido por uma doença tão complicada como a Alzheimer.
Sabemos que um dos sintomas principais da doença é a perda progressiva da memória. Mas até onde? Há um apagamento completo da memória a ponto de podermos falar de perda do self?
Sem dúvida que "É verdade que uma pessoa com Alzheimer perde muitas das suas capacidades e faculdades à medida que a doença progride...
Mas a perda de consciência de si poderá significar uma perda do Self, enquanto unidade e totalidade do sujeito?"
Pode haver uma regressão mas “alguns aspectos do seu carácter essencial, da sua personalidade e realidade pessoal, do seu self, sobrevivem – a par, sem dúvida, de certas formas quase indestrutíveis de memória - até mesmo na demência avançada.”
“É como se a identidade tivesse uma base neural tão robusta e por toda a parte presente, como se o estilo pessoal estivesse tão profundamente incorporado no sistema nervoso que nunca se perdesse por completo, pelo menos enquanto houver vida mental."
“Em particular a resposta à música é preservada até mesmo numa fase muito avançada da demência.“
Até para a semana.
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* Oliver Sacks, Musicofilia, Relógio d'Água Editores, 2008
Voltamos, hoje, à “ Opinião” de 5ª feira. Obrigado a todos os que me ouvem. Vamos continuar a falar de psicologia e de educação ou melhor dos comportamentos das pessoas, da psicologia na escola e nas famílias, dos problemas do quotidiano, da política educativa e de tudo o que faz parte da vida. Sem restrições mas com responsabilidade...
Mas podemos encontrar os fundamentos para uma reforma educativa nos poetas, como eu penso que encontrei em Walt Whitman que nos dá uma visão muito precisa da escola para a América do seu tempo e do trabalho árduo dos professores e eu penso que é ajustada para o nosso tempo, aqui neste país.
Walt Whitman fala-nos dos alunos, e da escola (no poema “Pensamentos de um velho sobre a escola", Folhas de erva, p. 354-355)
"Um velho reúne recordações da juventude e flores que a juventude,
ela mesma, não consegue reunir.
Hoje só eu vos conheço,Ó belos céus da aurora, ó orvalho da manhã na erva!
E são estes que vejo, estes olhos cintilantes,Cheios de um significado místico, estas vidas jovens,Que constroem, que se equipam como uma frota de navios, navios imortais,Que em breve navegarão pelos mares sem limites,Na viagem das almas.
Apenas um grupo de rapazes e raparigas?Apenas as enfadonhas lições de leitura, escrita e cálculo?Apenas uma escola primária?Ah, mais, muito mais....E tu, América,Fizeste uma avaliação real do teu presente?Das luzes e das sombras do teu futuro, bom ou mau?Presta atenção às tuas raparigas e rapazes, ao professor e à escola."
“És tu quem pretende um lugar para ensinar ou ser aqui poeta, nos Estados?
A missão é digna de respeito, as condições duras.
Quem pretende ensinar aqui bem pode preparar-se de corpo e alma,
Bem pode explorar, ponderar, armar-se, fortificar-se, endurecer e tornar-se ágil,
Antes será certamente interrogado por mim com muitas e sérias perguntas.
Quem és tu na verdade que queres falar ou cantar para a América?
Estudaste bem o país, os seus idiomas e os seus homens?
Aprendeste a fisiologia, a frenologia, a política, a geografia, o orgulho, a liberdade e a amizade do país? Os seus fundamentos e objectivos?
...
Conheces a fundo a Constituição federal?
Vês quem deixou todos os poemas e processos feudais para trás e adoptou os poemas e processos da Democracia?
És fiel às coisas? ensinas o que a terra e o mar, os corpos viris, a feminilidade, o instinto amoroso, os furores heroicos ensinam?
Passaste depressa pelos costumes efémeros e pelo que só é popular?
Consegues opor-te às seduções, loucuras, vertigens, lutas ferozes? és muito forte? és, na verdade de todo o Povo?"
....
("Na margem do azul Ontário", 12, Folhas de erva, p. 311)
Sem dúvida, todo um programa para quem ama o seu país e tem a noção de que a educação é o cimento que faz os alicerces de um povo.
Até para a semana.