Madeleine Peyroux - Smile
Sorria, embora seu coração esteja doendo
Sorria, mesmo que ele esteja partido
Quando há nuvens no céu
Você vai sobreviver
...
CARTA A MEUS FILHOSSobre os fuzilamentos de GoyaNão sei, meus filhos, que mundo será o vosso.É possível, porque tudo é possível, que ele sejaaquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,onde tudo tenha apenas a dificuldade que advémde nada haver que não seja simples e natural.Um mundo em que tudo seja permitido,conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.E é possível que não seja isto, nem seja sequer istoo que vos interesse para viver. Tudo é possível,ainda quando lutemos, como devemos lutar,por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,ou mais que qualquer delas uma fieldedicação à honra de estar vivo.Um dia sabereis que mais que a humanidadenão tem conta o número dos que pensaram assim,amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,de insólito, de livre, de diferente,e foram sacrificados, torturados, espancados,e entregues hipocritamente â secular justiça,para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,a uma pátria, uma esperança, ou muito apenasà fome irrespondível que lhes roía as entranhas,foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.Às vezes, por serem de uma raça, outraspor serem de urna classe, expiaram todosos erros que não tinham cometido ou não tinham consciênciade haver cometido. Mas também aconteceue acontece que não foram mortos.Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,aniquilando mansamente, delicadamente,por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanhahá mais de um século e que por violenta e injustaofendeu o coração de um pintor chamado Goya,que tinha um coração muito grande, cheio de fúriae de amor. Mas isto nada é, meus filhos.Apenas um episódio, um episódio breve,nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)de ferro e de suor e sangue e algum sémena caminho do mundo que vos sonho.Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguémvale mais que uma vida ou a alegria de té-la.É isto o que mais importa - essa alegria.Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tantonão é senão essa alegria que vemde estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguémestá menos vivo ou sofre ou morrepara que um só de vós resista um pouco maisà morte que é de todos e virá.Que tudo isto sabereis serenamente,sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,e sobretudo sem desapego ou indiferença,ardentemente espero. Tanto sangue,tanta dor, tanta angústia, um dia- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -não hão-de ser em vão. Confesso quemuitas vezes, pensando no horror de tantos séculosde opressão e crueldade, hesito por momentose uma amargura me submerge inconsolável.Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,quem ressuscita esses milhões, quem restituinão só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhesaquele instante que não viveram, aquele objectoque não fruíram, aquele gestode amor, que fariam «amanhã».E, por isso, o mesmo mundo que criemosnos cumpre tê-lo com cuidado, como coisaque não é nossa, que nos é cedidapara a guardarmos respeitosamenteem memória do sangue que nos corre nas veias,da nossa carne que foi outra, do amor queoutros não amaram porque lho roubaram.
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