30/03/24

Envelhecimento e perda de memória


1. A memória é uma capacidade mental extraordinária que nos permite vida autónoma e com qualidade. Mantém-se durante toda a vida ou pode falhar de forma mais maciça ou de forma mais lenta e parcelar. 
O cérebro aprende e memoriza mas também esquece. Em condições normais esquecemos o que não é importante para nós, e, ao longo do tempo, vamos perdendo mesmo as memórias relevantes. Juntamente com outras capacidades a memória vai-se desvanecendo com o passar do tempo. Mas isso faz parte da vida, como ouvi M. Esteves Cardoso dizer numa entrevista (cito de memória ): o tempo (ou a falta de tempo) é o pior que há mas o passar do tempo é o melhor que há porque se não for assim nada acontece, as coisas boas não tinham acontecido e isto é o melhor que tem a velhice: podermos recordar as coisas boas que nos aconteceram...

2. Geralmente, as memórias vão-se desvanecendo com o passar do tempo: “O avô tem uma borracha na cabeça” (Rui Zink). Mas, a menos que aconteça um qualquer traumatismo, nem sempre desaparecem na totalidade de imediato.
Acontece com frequência, momentaneamente, não recordarmos o nome de uma pessoa. Mesmo se familiares e amigas. Da mesma forma acontece com algumas actividades ou até hábitos que de repente desaparecem da nossa memória.

3. Há episódios de perda de memória que nos deixam muito preocupados. Como, por exemplo, o episódio que descrevo a seguir e que pode voltar a acontecer em qualquer altura.
“Hoje levantou-se no seu estado de saúde habitual, tomou banho sem dificuldade de forma autónoma. Pelas 7h30 ao tentar fazer o pequeno-almoço conseguia reconhecer os ingredientes mas não sabia qual a ordem para fazer a mistura queria fazer leite com cereais mas não se lembrava dos passos para o realizar. Sabia que tinha de tomar a medicação mas não sabia quais nem de que forma. Pediu ajuda à mulher que refere que o doente estaria muito ansioso com a situação. A mulher nega alteração da linguagem. Em seguida levou os netos à escola. Dificuldade em abrir a porta do carro não sabia como se fazia. 
Nunca teve episódios prévios semelhantes. Sem alteração da FM ou da sensibilidade. Sem descoordenação. Sem diplopia ou disartria. Nega cefaleia. Sem movimentos involuntários. Sem episódios prévios semelhantes. Sem febre. Sem traumatismos.”

4. Algumas destas situações têm a ver com a perda de capacidade de recordar, com a deterioração cognitiva ligeira, com as demências e as amnésias. Neste caso, após os vários exames necessários, a hipótese de diagnóstico parece ser de amnésia global transitória.
O que é isso, afinal ? 
A amnésia global transitória "é uma amnésia que dura menos de 24 horas e que costuma surgir pela primeira vez entre os 60 e 70 anos. A pessoa mantém-se consciente e orientada, não apresenta alterações sensitivas nem motoras, e a linguagem e o raciocínio estão preservados. O paciente repete constantemente as mesmas perguntas, porque se sente incapaz de criar memórias a curto prazo, dado que a amnésia é anterógrada e afecta o que acontece depois do episódio. Por outro lado, conserva a memória a longo prazo em todas as suas funções." (p.111)

5. Contingências do envelhecimento. Faz parte. Nunca estamos preparados para eventualidades assustadoras mesmo para aquelas que não merecem outra preocupação e isso já é suficientemente tranquilizador.
De resto fica sempre a interrogação sobre o nosso envelhecimento: "E quando for velhinho como é que vai ser? 
"Eu já não vou a tempo. Nem sequer consigo desacelerar. Tenho inveja da tranquilidade com que os meus amigos estão uns com os outros e sinto-me triste por não ser capaz do acto de amizade que tem maior valor: deixar-me estar quieto. Um verdadeiro amigo apenas quer a companhia do outro. O que se faz ou o sítio onde se está é secundário. Não é como eu, sempre aos saltos, a perguntar "Onde é que vamos? O que é que vamos fazer?". Os amigos são mais que companheiros. Deveriam ser "companhia"...
Sou um Ferrari em segunda mão com uma avaria grave na caixa de velocidades: só tenho quinta. Enquanto for novo, consigo arrancar em quinta, dando cabo do meu mecanismo e patinando por toda a parte, até atingir a velocidade de ponta. Mas quando tiver mais uns quilómetros em cima, de nada me servirá ter só a última velocidade. Devagar se vai ao longe. Depressa só dá para dar umas voltas." (Miguel Esteves Cardoso, Independente demente, p. 243-244)



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