05/09/07

A entrada na escola: integração e ritualização

O primeiro dia de escola é para a criança um acontecimento importante caracterizado objectivamente pela separação da família e pelo encontro com um novo mundo. É também importante pelas expectativas que lhe foram criadas pelos adultos e pelas outras crianças.
Esta criança é a representante da sua família naquela escola que ela está a frequentar. Ela vai pertencer a uma turma e vai ter um grupo de amigos. Em cada ano escolar que ela vai frequentar vai tendo novas experiências sociais e educativas. Tem que se integrar em novas turmas, passa a ter novos amigos. Por vezes, a entrada em novas fases de ensino passa por rituais de iniciação que alguns aceitam sem qualquer discussão mas levanta problemas a outros, designadamente aos pais e às crianças.
Como já vimos a entrada na escola apresenta duas vertentes: a separação dos pais e do meio familiar e a integração num novo meio. Este processo vai evoluindo quando a criança entra para o 2º ciclo do ensino básico, para o secundário e mais tarde para a Universidade, que é a grande separação da família, dado que o estudante, normalmente, vai integrar um meio completamente diferente, não só a nível escolar mas também a nível social. Para os que vivem em cidades de província implica muitas vezes a ida para grandes cidades como Lisboa, Coimbra, Porto, embora com a criação das universidades nos distritos, isto já não seja bem assim. Começa de qualquer modo uma mobilidade que até aí o estudante não tinha experimentado.
Este processo implica sucessivas separações e integração em novos meios à medida que o estudante avança no seu processo de escolarização. Nestes novos ambientes, devem ser acolhidos da melhor forma, isto é, o acolhimento da criança e do jovem é também uma função da escola que lhe deve prestar o apoio necessário à sua integração. A integração neste novo ambiente é também a integração num grupo de companheiros. Em muitas escolas organiza-se a semana de recepção ao caloiro, aspecto que toma particular relevância na Universidade.
Com iniciativas deste tipo pretende-se efectuar um processo de acolhimento necessário a quem não conhece o novo meio, os outros estudantes, as rotinas académicas...Este processo é igualmente importante para os pais, particularmente nos 2º ciclo, 3º ciclo e secundário. A nossa experiência como pais tem sido positiva, e podemos considerar o acolhimento das escolas razoável: alguma informação, auxiliares de acção educativa disponíveis, realização de reuniões de turma para informações, etc. Pensamos que se podiam melhorar alguns aspectos particularmente a nível da informação, da sinalização dos espaços, etc.

Outros aspectos que têm mais a ver com a integração no grupo de companheiros merece também uma particular atenção. A praxe é um desses aspectos.
Por uma questão de moda a praxe coimbrã generalizou-se. Aquilo que teve o seu tempo e o seu espaço, provavelmente hoje não se justifica e algumas práticas sexistas e classistas foram abandonadas. No entanto, a generalização ao ensino básico e secundário corresponde em nosso entender mais a um fenómeno de imitação, como uma moda, do que com algo que corresponda a uma necessidade de integração no grupo.

A praxe pode ser encarada em perspectivas diferentes: ou ela se integra numa perspectiva de acolhimento, criando mecanismos próprios de integração dos mais novos no grupo escolar ou é uma prática meramente tradicionalista, autocrática e que atenta contra as liberdades individuais.

No primeiro aspecto trata-se de um fenómeno de grupo - o conformismo - que se traduz "pela emergência de normas e modelos colectivos". "Estes modelos tomam a forma de costumes aos quais os que chegam de novo devem submeter-se mais ou menos espontaneamente para se integrarem no grupo"." Esta função colectiva do conformismo permite a coesão do grupo". Por outro lado, deste processo faz parte um conjunto de símbolos e rituais de iniciação. "O símbolo tem uma função de comunicação. Contribui para lembrar e manter os sentimentos de pertença, para suscitar ou assegurar a participação adequada dos membros, segundo a posição e o papel que cada um ocupa, para manter "a ordem social natural e a solidariedade que ela implica. "Os rituais como as festas (queima das fitas, festas de finalistas), a saudação, os rituais de iniciação, têm uma função vinculadora. Os rituais de vinculação são amistosos e apaziguadores. É isso que vincula os seres humanos. Geram confiança mútua. A agressividade tem sido ritualizada " houve sempre tentativas de ritualizar a agressividade humana" e os rituais vinculadores são oponentes da agressividade. Há no entanto formas diversas de vinculação.

A vinculação através do medo abre caminho ao autoritarismo. Os símbolos da praxe coimbrã (a moca, a colher e a tesoura) não são propriamente amistosos, mas agressivos, e não servem para rituais amistosos, mas para situações agressivas e autoritárias: as rapadas, apanhar nas unhas... O uso de vestuário característico, a música, etc. tem de facto outro tipo de características que criam o tal espírito de pertença de que falávamos.

A vinculação pelo medo e pela autoridade está bem patente em frases como:" Quem manda aqui somos nós", " vocês limitam-se à vossa insignificância", " animal infecto ", " o caloiro não tem direitos", que qualquer "regulamento" da praxe comtempla. A partir daqui é, pode ser, um crescendo de acções cruéis. Mesmo que estejam estabelecidos limites, o critério é de quem aplica a praxe. Não há qualquer espécie de controle, excepto quando acontecem problemas graves. Mas neste caso já é tarde para o exercer..." A crueldade é o amor pervertido e por isso o sadismo extremado é, sempre, sexualidade pervertida".

A pessoa cruel não pode dar, porque dar é um acto de amor. Devido a motivos inconscientes ninguém diz: "Bato porque tenho satisfação em bater", " bati no meu filho porque ele é pequeno", "vingo-me em casa quando o patrão se volta contra mim". Mas a arrogância e o sarcasmo podem também ser cruéis. " Cada espancamento torna uma criança sádica no desejo ou na prática". "Faço aos outros o que me fizeram a mim".

A praxe é muitas vezes a oportunidade para a realização de algumas destas acções.
E isto a sociedade não o pode permitir.

Carlos Teixeira

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