26/07/18

Da beleza e da feiura

1. Os comportamentos de assédio sexual, que acontecem fora dos estádios ou dentro deles, não se podem confundir com a questão de proibir ou evitar filmar "mulheres atraentes" sob pena de entrarmos em mais um plano inclinado onde a proibição passa a chamar-se censura.
Por outro lado, é claro que focar "mulheres atraentes" não pode desfocar-nos  do importante: a luta, legal e policial,  cada vez mais necessária, e enquanto houver uma vítima desta prática. 
É ainda uma questão de educação para valores éticos e morais ou para relativismos culturais (a que nem sequer o poder judicial é alheio) em que os primeiros não podem tolerar os segundos porque não respeitam aqueles valores, os valores universais dos direitos humanos.

2. Nem sempre as piores expectativas se confirmam. Poderá ser uma excepção, mas é uma boa experiência que mostra o caminho a seguir: "Como aprendi a amar os homens frequentando estádios de futebol".

3. Podíamos continuar a colocar imagens  consideradas, subjectivamente, de pessoas atraentes (Vão proibir estas imagens?): pessoas do público do estádio, atletas de várias modalidades,  políticos, artes, música, cinema, teatro...  sendo que a gravidade está em começar a proibir "não se sabe bem o quê atraente" e acabar por proibir qualquer imagem contaminada com o rótulo de "tudo o que seja atraente" em qualquer actividade.
Mais grave ainda se o propósito estiver bem definido: levar à proibição de mulheres frequentarem estádios de futebol, como acontece aqui (ou aqui e aqui), e, onde a FIFA não se sente incomodada pela ausência de liberdade das mulheres para assistirem a um jogo de futebol.

4. O que é uma "mulher atraente"? Porquê mulher e não homem atraente ou pessoas atraentes ?
Bom, parece que a  internet está cheia de gente que sabe o que isso é. Há até curso para homem e para mulher ficar atraente, respectivamente, para mulher e para homem. Os clichés são os que já se conhecem.
Coisas que os homens acham atraente em uma mulher (de acordo com a ciência) ; A visão masculina de uma mulher atraente ; Descubra quando uma mulher é atraente para os homens; 19 qualidades que tornam um homem atraente para mulheres.

5. Mas tudo se baralha quando não sabemos o que escolher: a Bela ou o Monstro.   O problema é que  depois de se "informar" talvez continue com as mesmas dúvidas que já tinha. Ou seja, com que critérios se pode tomar uma medida, que será referência da FIFA, para ser aplicada pelos realizadores de programas de futebol?

6. O que é a beleza ? O que é a beleza feminina ? Não é a mesma coisa nem para os homens nem para as mulheres. Nem hoje nem ao longo de 28000 anos.

7. Beleza ou feiura são caminhos subjectivos que dependem do olhar de cada um e dos padrões culturais que o influenciam, das subculturas e das modas a que cada um se submete ou converte, que cada um pensa que corresponde à sua forma de beleza ou de feiura, mesmo quando a feiura é procurada deliberadamente por algumas pessoas, tal como a beleza, havendo sempre subjacentes diversos objectivos motivacionais: evidenciar-se por ser diferente, evidenciar-se pelo estranho, liderar grupos de fãs,  jovens ou não, tirar vantagens como objecto de consumo, afirmar-se como modelo de imitação, modelo sexual (sex symbol), modelo de sucesso,  ou esperto videirinho...

8. Beleza e feiura são uma construção cultural, em que os atributos considerados belos ou feios constituem a representação social de beleza ou feiura. Assim, são valorizados certos traços considerados esteticamente belos ou feios num determinado espaço e num tempo em que o consumo impõe as suas regras.
Para Umberto Eco, a beleza nunca foi algo de absoluto e imutável, mas assumiu rostos diferentes segundo o período histórico e a região; não só no que diz respeito à beleza física (do homem, da mulher, da paisagem), mas também em relação à beleza de Deus ou dos Santos ou das ideias...



9. A beleza, afinal, depende da atribuição de cada um, é a existência das coisas "que simplesmente existem", como no poema de Alberto Caeiro, ou "a graça da vida em toda a parte", como no de Miguel Torga.


Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta

Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as coisas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Porque sequer atribuo eu
Beleza às coisas.

Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe
Que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então porque digo eu das coisas: são belas?

Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as coisas,
Perante as coisas que simplesmente existem.
Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!

“O Guardador de Rebanhos”. Alberto Caeiro.


À Beleza

Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.

És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.

És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.

És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.

És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço...
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.

Miguel Torga, «Odes», 1946, Antologia poética, 2ª ed. aumentada, Coimbra, 1985, pg.83-84


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