03/04/17

O quente e o frio: 60 anos de Comunidade Europeia


Pode dizer-se que a construção da Europa tem o tempo de vida da minha geração. É, por isso, importante reflectir sobre o  seu percurso e os percalços que é necessário evitar. 
Em 1951, nasceu a comunidade europeia do carvão e do aço (tratado assinado em Paris);
em 1957, nasceu a comunidade económica europeia, com o tratado de Roma;
em 1985, Portugal aderiu a CEE;
em 1 de Janeiro de 2002, entrou em circulação o euro (Tratado de Maastricht).
A comunidade europeia foi-se construindo, entre entusiastas, cépticos e críticos. A construção desta comunidade foi fundamental para os países que a ela decidiram aderir mas era, e é, igualmente importante ouvir os críticos e ponderar novos projectos e novos avanços. Quando o pêndulo quase caía para o federalismo, provavelmente, já há muito se devia ter tido mais cuidado com algumas pressas e alguns apressados.
O que acontece é que a Europa, no fim de contas, não está bem no coração nem no pensamento de muitas pessoas que dela fazem parte e de vez em quando o inconsciente toma conta da realidade do pensamento: há várias maneiras de ver a vida que não se coadunam com a diversidade social e cultural das comunidades.

Foi o que fez o presidente do Eurogrupo com as declarações que proferiu, mesmo utilizando uma alegoria, usada pelos comentadores, companheiros políticos e adversários, parcialmente e fora do contexto, mas, em todo o caso, indicativa da clivagem que sempre existiu mas que se tem revelado de todo inútil para a vida das pessoas sejam do norte ou do sul. *
Sempre houve, entre nós, a mitificação do norte, dos países onde se vivia melhor, bem organizados, com níveis de desenvolvimento superiores aos do sul. Esta mitificação mantém-se, como se viu pelas declarações referidas e reacções indignadas e de idêntico nível mítico. 
M. Lourdes Pintasilgo, em 30/11/79 (entrevista a Ana Martinez, da Rádio nacional sueca, "Europa do norte Europa do sul"), refere-se ao "mito sueco". À questão sobre o que a Suécia pode dar a Portugal e Portugal à Suécia refere: "A resposta a essa pergunta inscreve-se naquilo a que costumo chamar o “mito sueco”. O tipo de desenvolvimento verificado na Suécia depois da segunda metade do século XIX e a forma como o país evoluiu aparecem para muitos dos meus compatriotas como o modelo ideal." (p. 109)
"Há, no entanto, uma interrogação de fundo... é a questão da tremenda angústia que parece inundar toda a sociedade... será que tudo fica resolvido quando se resolvem as necessidades fundamentais ?" 
"Ao exprimir o cansaço das ideologias de que fala, a Suécia não faz mais do que ter um papel pioneiro entre os países industrializados ...o cansaço das ideologias é o fruto da ausência de objectivos a que tudo ficou reduzido pela prioridade atribuída ao aspecto económico em detrimento de outros aspectos da vida."(p.110)
Pintasilgo faz uma comparação com a termodinâmica. Só há produção de energia quando há uma fonte fria e uma fonte quente.  “Cada país poderá funcionar em relação ao outro ora como fonte quente ora como fonte fria." (Sulcos do nosso querer comum, p.111)
Não se trata mais de ver os países do sul como fonte quente ou fria que no fundo é a mistificação de um certo modo de vida que está longe de ser apenas isso, a desorganização, o sol, a praia, a boa vida em contraposição a países do norte como organizados, limpinhos e com qualidade de vida.
Embora algumas dessas características possam estar presentes em muitos países do norte ou do sul em maior ou menor grau.
Na realidade, os cidadãos de qualquer destes países funciona emocionalmente de forma idêntica embora com expressões socioculturais diferentes, o que só pode ser enriquecedor para as vários dimensões das comunidades.
O tempo da mitificação devia estar ultrapassado e muito mais o da mistificação do carácter de povos que felizmente têm as suas idiossincrasias, a sua personalidade, as suas capacidades e a sua maneira de ser e estar na vida. **
Nem mitificação nem mistificação. Mas como refere M L Pintasilgo,  “… se Portugal quer realmente ter um papel no mundo, não pode deixar de reforçar sobretudo a sua realidade europeia, da Europa das culturas, para poder dialogar de forma adequada com os outros espaços geográficos com os quais tem laços privilegiados “ (As minhas respostas, p. 109-110)
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* Poucas excepções, como a de José Manuel Fernandes, "Não há nada como um Dijsselbloem para pôr todos de acordo. Menos eu"  (Observador). Proliferaram, muito mais,  destrambelhamentos a favor ou contra, vindos das instituições, dos seus representantes ou dos ofendidos e indignados que se propõem "liquidar" o companheiro socialista Jeroen Dijsselbloem.
** Só dessa forma pode ser pensado, por exemplo, "Bifes mal passados", de J. Magueijo. 


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