20/02/20

Morrer


Lev Tolstói descreve assim o sofrimento no processo de morte de Ivan Iliitch:
Piotr, traz-me cá o medicamento. - «E depois porque não? Talvez o medicamento ajude.» Pegou na colher, tomou-o. «Não, não ajuda. Tudo isto é um disparate, uma ilusão» - concluiu mal sentiu o sabor familiar, demasiado doce e desesperado. «Não, já não consigo acreditar. Mas a dor, para que é esta dor, que ela desapareça ao menos por um minuto.» «E gemeu. Piotr arrepiou caminho. – Não, vai e traz o chá.
Piotr saiu. Ivan Iliitch, sozinho desatou aos gemidos, não tanto pela dor, pavorosa, como pela angústia. « Sempre a mesma coisa, dias e noites sem fim. Que isto seja mais rápido. Mais rápido o quê? A morte, as trevas. Não, não. Tudo é melhor do que a morte!» (Lev Tolstói, A morte de Ivan Iliitch”, p. 72)

A morte é um assunto que diz respeito a todos. É um processo natural, inerente à condição humana. Morrer é um processo previsível mas quase sempre inesperado e que não depende de nós. A morte de qualquer ser humano é sempre uma perda com a complexidade que a envolve e tem o seu tempo próprio para acontecer.
A questão que se coloca é se deverá ser acelerada pelo próprio ou por outra pessoa a seu pedido. No primeiro caso trata-se de suicídio. A outra situação, actualmente em discussão, requer a necessidade de algumas clarificações conceptuais. (Wikipedia)
Eutanásia é o acto intencional de proporcionar a alguém uma morte indolor para aliviar o sofrimento causado por uma doença incurável ou dolorosa. Geralmente a eutanásia é realizada por um profissional de saúde mediante pedido expresso da pessoa doente. (1)
A eutanásia é diferente do suicídio assistido, que é o ato de disponibilizar ao paciente meios para que ele próprio cometa suicídio.
A eutanásia pode ser classificada em voluntária e involuntária. É voluntária quando é a própria pessoa doente que, de forma consciente, expressa o desejo de morrer e pede ajuda para realizar o procedimento. Na eutanásia involuntária a pessoa encontra-se incapaz de dar consentimento para determinado tratamento e essa decisão é tomada por outra pessoa, geralmente cumprindo o desejo anteriormente expresso pelo próprio doente nesse sentido.
A eutanásia pode também ser activa e passiva. A eutanásia activa é o acto de intervir de forma deliberada para terminar a vida da pessoa. A eutanásia passiva consiste em não realizar ou interromper o tratamento necessário à sobrevivência do doente.
Distanásia é o prolongamento artificial do processo de morte e por consequência prorroga também o sofrimento da pessoa. Muitas vezes o desejo de recuperação do doente a todo custo, ao invés de ajudar ou permitir uma morte natural, acaba prolongando sua agonia. O tratamento é inútil. Não visa prolongar a vida, mas sim o processo de morte"
Ortotanásia significa morte pelo seu processo natural. Neste caso o doente já está em processo natural da morte e recebe uma contribuição do médico para que este estado siga seu curso natural. (2)

Outro aspecto não consensual tem a ver com a Constituição.
Jorge Miranda, não tem dúvidas: "legalizar a eutanásia "fere flagrantemente" a Constituição… sejam quais forem as circunstâncias e as intenções". Porque, argumenta, de acordo com o artigo 24º,1º, sobre a inviolabilidade da vida, "ninguém pode dispor da sua vida, como ninguém pode alienar a sua liberdade ou o respeito por si mesmo".
E Jorge Miranda soma-lhe "uma segunda inconstitucionalidade por omissão, por o Estado não conferir exequibilidade plena às normas constitucionais sobre direitos económicos. sociais e culturais", ou seja, "não defender a plena realização do SNS, incluindo cuidados paliativos e cuidados continuados".

A eutanásia é também um retrocesso civilizacional. (3) Tanto mais num tempo em que o conhecimento científico e os meios postos à disposição do ser humano, como os cuidados paliativos (4), podem ajudar a que no morrer haja menos sofrimento.
A aprovação da eutanásia é a instauração de um controle da vida pelas mais diversas razões, mesquinhas ou supostamente humanitárias mas ainda assim insuficientes para que a vida seja deixada ao poder de outros mesmo que pedida pela pessoa que a pretende.
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(1) Entre os motivos mais comuns que levam os doentes terminais a pedir uma eutanásia estão a dor intensa e insuportável e a diminuição permanente da qualidade de vida por condições físicas
Entre os fatores psicológicos estão a depressão e o medo de perder o controlo do corpo, a dignidade e independência.
(2) Desta forma, diante de dores intensas sofridas pelo paciente terminal, consideradas por este como intoleráveis e inúteis, o médico deve agir para amenizá-las, mesmo que a consequência venha a ser, indirectamente, a morte do paciente.
(3) Mesmo que deputados do BE digam o contrário... há outras opiniões, como esta, e até esta ...
(4) “Os cuidados paliativos definem-se como uma resposta activa aos problemas decorrentes da doença prolongada, incurável e progressiva, na tentativa de prevenir o sofrimento que ela gera e de proporcionar a máxima qualidade de vida possível a estes doentes e suas famílias. São cuidados de saúde activos, rigorosos, que combinam ciência e humanismo.”






16/02/20

Ciúme e violência doméstica


https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/1e/%282%29_Cycle_of_abuse%2C_power_%26_control_issues_in_domestic_abuse_situations.gif



O ciúme é uma das causas que está na origem da violência doméstica. Agride-se, violenta-se e mata-se, por causa do ciúme, sendo a vítima principalmente a mulher, como as estatísticas comprovam.
Para a Associação de Apoio à Vítima (APAV), a violência doméstica abarca comportamentos utilizados num relacionamento, por uma das partes, sobretudo para controlar a outra.
Assim, a violência doméstica abrange:
- os actos criminais enquadráveis na legislação (art. 152º, Código Penal, Decreto-Lei n.º 48/95): maus tratos físicos; maus tratos psíquicos; ameaça; coacção; injúrias; difamação e crimes sexuais (sentido estrito).
- outros crimes em contacto doméstico: violação de domicílio ou perturbação da vida privada; devassa da vida privada (imagens; conversas telefónicas; emails; revelar segredos e factos privados; etc. violação de correspondência ou de telecomunicações; violência sexual; subtracção de menor; violação da obrigação de alimentos; homicídio: tentado/consumado; dano; furto e roubo), em sentido lato).
O ciúme é um sinal de que algo não está a correr bem na relação do casal. Em muitos casos pode explicar a a violência doméstica e o feminicidio. Porém, há muitas outras causas que explicam estes comportamentos.
Continua a haver, no contexto social em que vivemos, o sentimento de que uma pessoa, normalmente a mulher, é propriedade de outra pessoa, em geral o homem, e tem contado com alguma passividade por parte da sociedade.

Assim sendo, a pessoa ciumenta controla a vítima do seu ciúme até ao limite preferindo a sua eliminação a vê-la com outra pessoa: "perdido por cem perdido por mil".

Para Freud, "O ciúme é um daqueles estados emocionais, como o luto, que podem ser descritos como normais. Se alguém parece não possuí-lo, justifica-se a inferência de que ele experimentou severa repressão e, consequentemente, desempenha um papel ainda maior em sua vida mental inconsciente. Os exemplos de ciúme anormalmente intenso encontrados no trabalho analítico revelam-se como constituídos de três camadas. As três camadas ou graus do ciúme podem ser descritas como ciúme (1) competitivo ou normal, (2) projetado, e (3) delirante.
Não há muito a dizer, do ponto de vista analítico, sobre o ciúme normal. É fácil perceber que essencialmente se compõe de pesar, do sofrimento causado pelo pensamento de perder o objeto amado, e da ferida narcísica, na medida em que esta é distinguível da outra ferida; ademais, também de sentimentos de inimizade contra o rival bem-sucedido, e de maior ou menor quantidade de autocrítica, que procura responsabilizar por sua perda o próprio ego do sujeito. Embora possamos chamá-lo de normal, esse ciúme não é, em absoluto, completamente racional, isto é, derivado da situação real, proporcionado às circunstâncias reais e sob o controle completo do ego consciente; isso por achar-se profundamente enraizado no inconsciente, ser uma continuação das primeiras manifestações da vida emocional da criança e originar-se do complexo de Édipo ou de irmão-e-irmã do primeiro período sexual... 
O ciúme da segunda camada, o ciúme projetado, deriva-se, tanto nos homens quanto nas mulheres, de sua própria infidelidade concreta na vida real ou de impulsos no sentido dela que sucumbiram à repressão...
... A posição é pior com referência ao ciúme pertencente à terceira camada, o tipo delirante verdadeiro. Este também tem sua origem em impulsos reprimidos no sentido da infidelidade, mas o objeto, nesses casos, é do mesmo sexo do sujeito. O ciúme delirante é o sobrante de um homossexualismo que cumpriu seu curso e corretamente toma sua posição entre as formas clássicas da paranóia. Como tentativa de defesa contra um forte impulso homossexual indevido, ele pode, no homem, ser descrito pela fórmula: ‘Eu não o amo; é ela que o ama!’ Num caso delirante deve-se estar preparado para encontrar ciúmes pertinentes a todas as três camadas, nunca apenas à terceira." (S. Freud, Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo, 1922)

O ciúme difere da inveja na medida em que envolve mais do que duas pessoas: o medo da perda por parte do sujeito activo do ciúme, a pessoa de quem se sente ciúmes e a terceira pessoa que é o motivo dos ciúmes.

Nos casos de ciúme patológico, verifica-se uma permanente desconfiança e um estado de tensão, angústia e insegurança pelo medo de ser traído, conduzindo a um constante controle das ações do parceiro, mesmo que este não tenha dado razões para tal. As reacções são desproporcionais e podem mesmo ser agressivas do ponto de vista físico e psicológico, gerando sofrimento para ambas as partes.

Como fenómeno psicológico complexo, o ciúme manifesta-se em todas as classes sociais, idades e regiões. O ciúme é também um comportamento complexo porque envolve um largo conjunto de emoções, pensamentos, reacções físicas e comportamentais.
O sofrimento da pessoa que tem ciúmes envolve toda a sua personalidade: as emoções tornam-se tóxicas, os pensamentos obsessivos, de desconfiança, e de ressentimento, as reacções físicas ficam dependentes da angústia e ansiedade e os comportamentos desajustados, agressivos e violentos.

Nesta situação, (se acha que os seus relacionamentos estão nesta situação) procurar ajuda especializada é o melhor caminho para o equilíbrio psicológico e para acabar com o seu sofrimento psicológico e o de outras pessoas.







05/02/20

Tráfico de crianças


https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/2018/GLOTiP_2018_BOOK_web_small.pdf



O tráfico de crianças é um caso especial de tráfico de seres humanos,  uma prática de sequestro, desaparecimento e ocultação da identidade das crianças, que se destina a  adopção ilegal, a exploração infantil, tanto para trabalho escravo  como sexual, actividades  criminais e uso militar das crianças.

Embora haja zonas do mundo onde estas práticas são mais evidentes, o nosso país não passa incólume a esta situação.  Vejamos duas situações recentes:

1. Uma notícia de 6-11-2019 da Renascença informa-nos de que, no último ano e meio, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) perdeu o rasto a 66 menores, que chegaram sozinhos ao aeroporto de Lisboa, pediram asilo a Portugal e desapareceram. A maioria terá como destino a exploração sexual.
Estas pessoas “destroem os seus próprios documentos, viajam sozinhas ou controladas por alguém dentro do voo e uma vez num Estado-membro solicitam asilo. Mais cedo ou mais tarde o seu processo será decidido, mas enquanto esperam estão, na maior parte das vezes, em regime aberto e desaparecem”. (Mário Varela, inspector da Unidade Anti-Tráfico de Pessoas do SEF - Renascença, "Tráfico de menores. Pedem asilo e depois desaparecem. Quantos? Todos". Celso Paiva Sol, Renascença, 6/11/2019)*

2. Joana Amaral Dias, recentemente, adoptou uma criança, viajou com o menino (Dinis) e a restante família para Cuba onde estiveram de férias, e contou que esta "foi uma experiência assustadora". "Porque fomos para Cuba e levei um papel do tribunal para comprovar que ele [Dinis] está à minha guarda, e acreditam que saí da Europa, entrei em Cuba, saí de Cuba, voltei a entrar na Europa sem nunca me pedirem esse papel. Dá que pensar. Fiquei assustadíssima" . ("Joana Amaral Dias partilha "experiência assustadora" com filho adotivo", Notícias ao Minuto, 28/1/2010)

Um relatório da ONU, de 07-01-2019, Global Report on Trafficking in Persons 2018, refere que dos  142 países analisados, as crianças representam 30%, quase um terço, de todos os indivíduos traficados, sendo o número de meninas afectadas superior ao de meninos.
Em 2016, quase 25 mil pessoas foram traficadas no planeta - 70% eram do sexo feminino, com as meninas representando 20% de todas as vítimas. A exploração sexual corresponde a cerca de 59% do total dos casos. O trabalho forçado foi identificado em 34% das ocorrências.
Embora as crianças sejam em sua maioria vítimas do tráfico para trabalhos forçados (50%), muitas também são vítimas de exploração sexual (27%) e outras formas de exploração, como mendicidade forçada, recrutamento para tropas e grupos armados e actividades criminosas forçadas. 
As meninas foram vítimas de exploração sexual em 72% dos episódios analisados. Casos de trabalho forçado envolvendo as jovens menores de idade equivaliam a 21% do total.

O tráfico de crianças é um dos mais abjectos comportamentos do ser humano e priva as crianças de praticamente todos os seus direitos fundamentais: o direito a uma família,  à educação, à saúde,  a não sofrerem maus tratos, ao desenvolvimento  num ambiente afectivo e emocional…
Os países e respectivos governos são responsáveis pela incapacidade de organização de um sistema de protecção eficaz para estas crianças.
Como diz Joana Amaral Dias vivemos de facto num mundo "assustador" e, acrescento eu, um mundo sem-vergonha e um mundo desumanizado (Seligman **).
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* Escrevi sobre o assunto em  Maldade: o caso das crianças desaparecidas.
** Forças de carácter da virtude Humanidade: Amor, Bondade e Inteligência social.




https://www.mixcloud.com/RACAB/cr%C3%B3nica-de-opini%C3%A3o-de-carlos-teixeira-06-02-2020/