11/12/23

"Na hora da partida"

"É vontade raivosa que muitas vezes me assalta, mas quando consigo travar a tempo, passados uns instantes de reflexão logo descarto a ideia, ciente de que o resultado seria funesto.

Dá-se o caso, e com ele há vidas sofro, que me desconcerta a violência e disparidade dos meus sentimentos para com a terra em que nasci, as raivas que ela me provoca, como se em vez de um lugar, um território, uma nação, Portugal fosse gente.

Ora o vejo como um sujeito estúpido que me dá vontade de insultar e agredir, ora um tonto de tal modo desvairado que não paro de abanar a cabeça, de vez em quando uma inocente criança, que em mim desperta insuspeitados carinhos e ternura.

Olho-o de longe e assusta-me a frieza com que disseco o seu funcionamento, o sarcasmo que me provocam os pandilhas que há décadas o esbulham, fingindo que governam, os sortidos donos daquilo tudo, os que se dobram ajoelhados como escravos de galé. E ainda os jeitos, as luvas, o fatalismo, as vénias, a cunha, a subserviência para com os que estão acima, o desprezo para com os que dependem. O medo generalizado, os brandos costumes, as manhas, o respeitinho. Aquela inveja, que de tão extraordinária e corrente parece ser genética. A promessa raro cumprida, idem a sornice, o deixa para amanhã, a fatuidade, o valor das aparências, o gosto da rasteira.

Mas depois, tão entranhado português que sou, e protegendo-me de mim próprio, logo amoleço, procuro razões de brandura e desculpa, fecho um bocadinho os olhos, embalo-me com a esperança de que cheguem os amanhãs que sempre desejei.

Contudo agora, melancolicamente certo e seguro que a minha hora não tardará, sei que vou partir sem os ver chegar."



J. Rentes de Carvalho, Tempo contado


Este maravilhoso texto de J. Rentes de Carvalho é uma justa definição daquilo que somos e sentimos. 
Amor e ódio por termos tudo para sermos melhores do que somos mas com os pés de barro que nos entravam a marcha para uma vida sem sobressaltos, o que nos chateia e encanita, mas, por fim, fica sempre o amor a este país.
Tanto cantámos a paz, o pão, habitação, saúde, educação... que já não damos por nada... a prestação da casa, a falta de professores, o aeroporto ou a simples marcação de uma consulta no centro de saúde...
Mas não é este desconsolo o que se passa com aqueles que amamos ? E lá estou também eu a pensar que se trata de gente.
Já no fim de termos visto quase tudo, não cremos nos amanhãs que esta gente canta, nem as falinhas-mansas das campanhas eleitorais nos seduzem, como mais uma que aí vem. 
Resta-me sonhar com "os amanhãs que sempre desejei".




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