10/05/16

Poesia para uma vida

Havia uma criança que saía.

Havia uma criança que saía todos os dias,
E o primeiro objecto que olhava transformava-se nela,
E esse objecto tornava-se parte dela durante o dia ou uma parte do dia,
Ou por muitos anos ou por dilatados ciclos de anos.
Os primeiros lilases faziam parte desta criança,
E a erva e as campainhas brancas e vermelhas,
e o trevo branco e vermelho e a canção do papa-moscas-febo,
E, em Março, os cordeiros e a rosada ninhada da porca, e o potro da égua e o vitelo da vaca,
E a ruidosa ninhada na capoeira ou no lamaçal junto ao tanque,
E os peixes tão curiosamente suspensos lá em baixo, e o belo e curioso líquido,
E as plantas aquáticas com as suas graciosas cabeças horizontais, tudo fazia parte dela.
Os rebentos de Abril e Maio tornavam-se parte dela,
Os rebentos do grão de Inverno e os do milho amarelo-claro e as raízes comestíveis do jardim,
E as macieiras cobertas de flores e mais tarde o fruto, e as bagas silvestres e a mais vulgar das ervas à beira da estrada,
E o velho ébrio a cambalear para casa vindo do alpendre da taberna que acabara de deixar,
E a professora que seguia o seu caminho para a escola,
E os rapazes amigos que passavam e os rapazes brigões,
E as raparigas bem arranjadas de rostos frescos e a rapariga ou rapaz negro descalços,
E tudo o que acontecia na cidade e no campo para onde quer que ela fosse.
Os seus próprios pais, o que a tinha gerado e a que a tinha concebido no seu útero e a dera à luz,
Deram a esta criança mais deles próprios do que tudo isto,
Todos os dias lhe deram e tornaram-se parte dela.
A mãe, em casa, colocando tranquilamente os pratos da ceia na mesa,
A mãe com doces palavras, com o seu chapéu e vestido limpos, um odor sadio desprendendo-se da sua pessoa e da roupa quando passava,
O pai, robusto, auto-suficiente, viril, mesquinho, colérico, injusto,
O soco, a palavra desabrida e gritada, a avareza, a negaça astuciosa,
Os costumes familiares, a linguagem, a companhia, a mobília, o coração ansioso e orgulhoso,
O afecto que não há-de ser contrariado, o sentido do real, a ideia de que, apesar de tudo, isso poderia ser irreal,
As dúvidas do dia e as dúvidas da noite, os interrogativos se e como,
Se o que assim parece ser o é ou tudo não passa de um clarão ou uma mancha?
Os homens e as mulheres apinham-se apressados nas ruas, se não são clarões e manchas, que são eles?
As próprias ruas e as fachadas das casas e as mercadorias nas montras,
Os veículos, as parelhas, os molhes de pesadas pranchas, as grandes travessias nos barcos,
A aldeia nas terras altas vista de longe ao pôr do Sol, o rio no meio,
As sombras, a auréola e a neblina, a luz que cai sobre os telhados e as empenas, brancas ou castanhas, a duas milhas de distância,
A escuna perto que desce sonolenta com a maré, o pequeno barco na sua esteira a ser rebocado,
As ondas que se precipitam e revolvem com cristas que rapidamente se desfazem e se lançam com força,
Os estratos de nuvens coloridas, a longa barra solitária de tonalidade castanho-avermelhada, a extensão da pureza, na qual ela jaz imóvel,
A linha do horizonte, o corvo-marinho que voa, a fragrância do pântano salgado e do limo na praia,
Tudo isto se tornou parte daquela criança que saía todos os dias, que continua e há-de sempre continuar a sair todos os dias.

Walt Whitman, Folhas de Erva, pag.326-327

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Foi em A. Gesell, A Criança dos 5 aos 10 Anos, pag 245-246, que li, pela primeira vez, este poema de Walt Whitman. Estudava Psicologia, no ISPA. Então percebi que este poema era um verdadeiro compêndio de psicologia do desenvolvimento.
Não mais deixei Gesell, nem Whitman, nem a psicologia do desenvolvimento, que me têm acompanhado desde então.
Passou a ser de leitura (quase) obrigatória dos meus alunos da ESE, na sala de aula, e dos cursos de formação sobre educação em que participei.  E, sempre que o leio, por ter sido escrito, dou graças à vida.

              


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