“Um dos raros casos em que Aristóteles vai buscar à esfera
da vida privada um exemplo de acção – a relação entre beneficiador e beneficiário
- constitui talvez a melhor ilustração
de como tal solução pode destruir a própria substância das relações humanas.
Com aquela cândida abstenção de reflexos morais tão típica da antiguidade grega
(mas não da romana), Aristóteles começa por dizer, como facto corriqueiro, que
o benfeitor ama sempre aqueles a quem ajuda mais do que é amado por eles. Em
seguida , passa a explicar que isto é apenas natural, visto que o benfeitor
executou uma obra, uma ergon, ao
passo que o beneficiado aceitou a sua beneficência. Segundo Aristóteles, o
benfeitor ama a sua «obra» - o
beneficiário que ele «criou» - tanto
quanto o poeta ama os seus poemas; e lembra ao leitor que o amor do poeta pela
sua obra não é menos arrebatado do que o amor da mãe pelos filhos. Com isto,
Aristóteles mostra claramente que concebe a acção em termos de fabricação, e o
seu resultado , a relação entre os homens em termos de «obra» realizada (a
despeito das suas enfáticas tentativas de distinguir entre acção e fabricação, praxis e poiesis). No caso, é perfeitamente
óbvio que esta interpretação – embora possa servir para explicar psicologicamente
o fenómeno da ingratidão, se benfeitor e beneficiado concordarem em interpretar
a acção em termos de fabricação -
inutiliza na verdade, a própria acção e o seu verdadeiro resultado, a
relação que ela deveria ter estabelecido.”
Hannah Arendt, A
condição humana, cap. V - acção, 27 –
a solução grega, pag. 245-246
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