10/07/15

Credores e devedores, a substância das relações humanas e a ingratidão

A Condição Humana
“Um dos raros casos em que Aristóteles vai buscar à esfera da vida privada um exemplo de acção – a relação entre beneficiador e beneficiário -  constitui talvez a melhor ilustração de como tal solução pode destruir a própria substância das relações humanas. Com aquela cândida abstenção de reflexos morais tão típica da antiguidade grega (mas não da romana), Aristóteles começa por dizer, como facto corriqueiro, que o benfeitor ama sempre aqueles a quem ajuda mais do que é amado por eles. Em seguida , passa a explicar que isto é apenas natural, visto que o benfeitor executou uma obra, uma ergon, ao passo que o beneficiado aceitou a sua beneficência. Segundo Aristóteles, o benfeitor ama a sua «obra»  - o beneficiário que ele «criou» -  tanto quanto o poeta ama os seus poemas; e lembra ao leitor que o amor do poeta pela sua obra não é menos arrebatado do que o amor da mãe pelos filhos. Com isto, Aristóteles mostra claramente que concebe a acção em termos de fabricação, e o seu resultado , a relação entre os homens em termos de «obra» realizada (a despeito das suas enfáticas tentativas de distinguir entre acção e fabricação, praxis e poiesis). No caso, é perfeitamente óbvio que esta interpretação – embora possa servir para explicar psicologicamente o fenómeno da ingratidão, se benfeitor e beneficiado concordarem em interpretar a acção em termos de fabricação -  inutiliza na verdade, a própria acção e o seu verdadeiro resultado, a relação que ela deveria ter estabelecido.”


Hannah Arendt, A condição humana, cap. V - acção,  27 – a solução grega, pag. 245-246

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