06/06/25

Activismo e manipulação


A comunicação social vai dando conta de episódios como este: "As autoridades detiveram quatro ativistas por "desobediência" ao tentarem bloquear uma via de acesso ao Aeroporto Humberto Delgado. O protesto tem como lema “travar a crise climática”. Ou como este, mais antigo: "Sítio pré-histórico inglês de Stonehenge pulverizado com tinta por ativistas ambientais"...

“Quando pensamos em ativismo, muitas vezes associamos o termo a demonstrações públicas, construção de barricadas, bem como atividades engraçadas e criativas pensadas para chamar a atenção para uma causa.“
Na maioria das vezes, essas atividades não são projetadas para criar ou propor consenso. Elas são pensadas para convencer ou informar as pessoas para, por exemplo, obter apoio popular para uma causa ou colocar um problema na agenda pública... (1)
O que caracteriza o activismo é essencialmente o protesto público e a influência dos decisores. 
Substancialmente, trata-se de uma forma de manipulação da mente. Os objectivos do activismo são os de quaisquer outras formas de manipulação, servindo-se das repercussões que causa através dos meios de comunicação social.
De facto, todos sabemos do poder de manipulação que os media oferecem à política,  à economia, ao consumo, ao marketing, publicidade, propaganda e acção psicológica...
Claramente, os activistas outra coisa não fazem do que inventar formas de manipular os comuns mortais com a finalidade de levar à tomada de decisão no consumo, na moda, nos comportamentos a adoptar segundo os padrões por eles definidos.

Acontece que num regime democrático existem instituições que dentro da diversidade de propostas políticas escolhidas pelo povo eleitor devem tomar as decisões necessárias ao seu governo.
Ora o activismo não aceita estes procedimentos. Em vez disso, utiliza actividades se possível espectaculares, para manipular as pessoas e levá-las a aderir aquilo que democraticamente não conseguem. 
Rui Ramos diz que “os activistas são os que nunca têm mais que fazer, os que nunca duvidam, os que nunca admitem que a questão pode ter outro lado, os que estão prontos para tudo. Vivem num mundo simples, a preto e branco, imunes a todas as nuances. Mantêm-se, em todos os sentidos da palavra, inocentes: puros e inconscientes. Existem para a acção." (2)

Mas o que faz com que uma pessoa se torne activista? (3)
- A educação parental e a modelagem parece ser um factor importante. Num estudo, verificou-se que os alunos cujos pais lutaram no Vietnam eram muito mais propensos a protestar contra a Guerra do Golfo de 1991 do que aqueles cujos pais não eram veteranos de guerra.
- A personalidade também pode ter importância. Há indivíduos que têm maior probabilidade de sentir uma conexão pessoal se se vêem como parte da comunidade afectada por um problema, como, por exemplo, a identidade com os direitos das mulheres...
- Alguns actos aparentemente podem parecer altruístas , definidos como devoção aos interesses dos outros, mas, na verdade, advêm do desejo de ajudar a si mesmo...

Sabendo disto, está em cada um de nós ter a capacidade crítica para desobedecer aos chefes do activismo e fazer as escolhas da transparência, da coerência, da autenticidade... que possam trazer as respostas necessárias a um mundo melhor.



Até para a semana.



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(3) "What Makes an Activist?", Anne Becker, Psychology Today, 1-7-2003 (última revisão 9-6-2016)





Rádio Castelo Branco





01/06/25

Os anjos vão dormir...



Os anjos vão dormir...


Os anjos vão dormir: a noite cai
mas libertam os astros para desvendarem
o que apaixona os homens sobre a terra,
que gritos soltam estes, como fazem guerras
e criam desencontros de hora a hora
e se atropelam sem real razão.

Pena que a escuridão seja tão longa,
que o reinado de estrelas não dissipe
o negro tenebroso da maldade:
o breu a consumir cabal alívio
ou confiança no florescimento.

Como saber se os anjos   quand' aurora
virão, calmos de sono, despertar-nos ?

António Salvado, Repor a luz

 

Mais um dia 1 de Junho em que se comemora o Dia Mundial da Criança. Assinalado, pela primeira vez, em 1950, por iniciativa das Nações Unidas, com o objetivo de chamar a atenção para os problemas das crianças, mantém-se mais necessário do que nunca quando vivemos, principalmente as crianças, com "o negro tenebroso da maldade: o breu a consumir cabal alívio ou confiança no florescimento".



29/05/25

Vitórias e derrotas


No futebol como na política, no (nosso) clube ou no (nosso) partido, tem que se conseguir a vitória a todo o custo e a derrota não pode existir. 
Em todos os jogos da nossa vida, no jogo familiar, sindical, interpessoal, transformamos cada vitória ou derrota num assunto tão fundamental que reagimos com emoção de forma desproporcionada, ou arranjamos maneiras de enviesar e alterar a realidade do fracasso.

Porque é tao dificil assumir a derrota? Já nos habituámos a ver, nas noites eleitorais, transformar derrotas em vitórias. Há quem nunca perca e seja incapaz de ver a realidade. Assistimos muitas vezes a episódios de quem não sabe perder e até tem mau perder. 
E o que é mais espantoso: porque não se sabe ganhar? Por que é que nas vitorias tem que haver vingança e manifestações violentas ?

Experiências positivas e negativas, vitórias e derrotas afetam o cérebro de maneiras diferentes.  (Veja o que acontece no cérebro na vitória e na derrota)
Na vitória, o cérebro liberta substâncias químicas, principalmente dopamina, que é frequentemente associada ao prazer e à recompensa. Cria uma sensação de euforia e satisfação, que incentiva a repetir comportamentos que levam ao sucesso. 

Por outro lado, numa derrota, o cérebro liberta dopamina em níveis muito menores. Em vez disso, outras áreas do cérebro, como a amígdala, que está associada às emoções e ao processamento do medo, tornam-se mais activas. Isso pode levar a sentimentos de frustração, tristeza ou, até mesmo, raiva.

A maneira como a mente interpreta uma derrota pode influenciar a resposta do cérebro. "Pessoas que vêem a derrota como uma oportunidade para aprender tendem a recuperar mais rapidamente e a serem mais resilientes. Isso sugere que a mentalidade desempenha um papel crucial na forma como o cérebro processa falhas e sucessos".

Na experiência de M. Seligman sobre o fracasso aprendido sabemos que podemos ser ainda mais prejudicados, a ponto de nos deprimirmos: nunca ganho, tudo corre sempre mal, perdido por cem perdido por mil...

Psychologies
Por outro lado, sabemos que cada fracasso pode ser um progresso para o sucesso. Mais do que lamentar-nos dos fracassos, é preciso celebrá-los como etapas cruciais do nosso percurso. Cada fracasso é uma lição, cada decepção é uma oportunidade de crescimento. Devemos aceitar os desafios, porque eles são o que nos torna mais fortes e nos impulsiona. Por isso, não devemos ficar presos em pensamentos negativos. Cada dia oferece uma nova chance de nos reinventarmos e construir um futuro mais positivo.

Eduardo Sá em "As derrotas das vitórias", refere: “O que custa numa noite de eleições é que muitos dos que concorrem nunca percam. Mesmo quando perdem. Na verdade, desistem de se confiar às suas derrotas e de crescer com elas. E demonstram, nesse momento, que se desencontraram da humildade de reconhecer a dor.”

Para concluir, podemos dizer que é derrotado quem não sabe perder mas é igualmente derrotado quem não sabe ganhar mesmo que a evidência seja menos óbvia.


Até para a semana.





Rádio Castelo Branco





23/05/25

Vínculo vital


Amar é uma tarefa da vida inteira. Aprender a amar também. Temos assim a possibilidade de experimentar desafios que ao longo do tempo vamos tentando superar; isto quer dizer que a nossa vida  é também um processo terapêutico em que nos adaptamos e tornamos melhores pessoas.

“Aprender mais sobre o que é o verdadeiro amor é essencial para superar a confusão mental, permitindo-nos detetar a sua ausência na forma como nos tratamos e começar a nutrir e honrar a sua presença naqueles de quem decidimos aproximar-nos”. (Alain de Botton, Uma viagem terapêutica, p.131)

Para Alain de Botton, temos uma ideia fundamentalmente romântica e pouco útil do amor segundo a qual o amor é a recompensa que alguém recebe pelos seus pontos fortes: ser rico, popular, carismático...

Porém, existe uma outra concepção de amor, não como recompensa pelos pontos fortes mas como simpatia e compromisso com a fraqueza: “Amor é o que sentimos quando vemos um bebé recém-nascido, indefeso  perante o mundo, a tentar agarrar o nosso dedo, apertando-o com força e esboçando um sorriso  frágil e agradecido.”...

As pessoas em quem devemos acreditar “são aquelas que se comovem com as nossas crises que estão por perto nas horas mais sombrias que estarão ao nosso lado quando o resto do mundo estiver a fazer troça.” (idem)


Sob o signo do afecto (da capa),
 de B. Cyrulnik  

Na encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco, definiu o vínculo amoroso como o vínculo da vida:  “ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar” (nº 87), ou seja, com as suas potencialidades mas também fragilidades.

Este vínculo vital exige rostos concretos a quem amar. São pessoas que têm as suas características mesmo que não sejam aquelas que mais apreciamos.

 

Ou seja, a nossa viagem humana  é constituída pelas nossas potencialidades mas também pelas vulnerabilidades: “as fraquezas, carências, medos, imaturidades, incompetências ou simples esquisitices”. (idemNo fundo, características humanas. Tanto umas como outras  podem ter aspectos importantes nessa viagem. Podemos aprender a amar e esta aprendizagem implica podermos ser vulneráveis.


No “decurso da vida” que inicia com a infância pode acontecer que as vulnerabilidades, como as perturbações psíquicas, provoquem rupturas no equilíbrio da nossa personalidade. 

Vão com certeza acontecer crises previsíveis mas  também imprevisíveis, algumas dessas crises podem transformar-se em factores de risco e, em alguns casos, factores de perigo, que seja necessário controlar ou resolver.

E é da interacção de potencialidades, como factores de protecção, e vulnerabilidades, como factores de risco, que pode surgir o equilíbrio na nossa vida e na nossa vida mental.

 

Os psicólogos têm vindo a adoptar sistemas compreensivos desta realidade. Assim, do jogo entre potencialidades e fragilidades resultantes do processo de socialização, das condições sócio-culturais e biopsicológicas do indivíduo (como, por ex., a adaptação cognitiva resultante do processo de assimilação e de acomodação) pode resultar a adaptação ou desadaptação;  e este é um processo de equilíbrios sucessivos (ou equilibração) em que as estruturas mentais vão mudando.

Para Alain de  Botton, os paradigmas da psicoterapia podem aplicar-se às relações amorosas, mesmo quando as relações são difíceis, como a escuta activa, suavizar a linguagem...

 


Até para a semana.





Rádio Castelo Branco 





16/05/25

A cultura do cuidado

 

É a prática  que mais falta faz na nossa sociedade. É verdade que o simples facto de se falar no assunto mostra preocupação de mudança. Mas há épocas  em que parece que estamos pior. As guerras vão-se somando e todos os dias nos apercebemos desse mundo sofrido que não vê solução nos políticos, quer democraticamente nossos representantes, quer ditadores, para haver melhoras.

Vivemos num mundo  de direitos, os direitos humanos, os direitos das crianças. Mas de que direitos se trata quando há milhões de crianças que não têm garantido sequer o direito à vida?

Em vez de os líderes deste mundo adoptarem a  cultura do cuidado como um imperativo, o que temos são guerras entre vizinhos, as guerras mais destrutivas, com os meios sofisticadamente selváticos, as mais violentas.

 É por isso que a cultura do cuidado é a base de toda a convivência. Sem ela não teríamos evoluído das cavernas para o respeito dos direitos humanos e da infância.


Dizia o Dr. Armando Leandro: “Não há desenvolvimento ético, cultural, social e económico de qualidade sem qualidade humana e esta é subsidiária em alto grau da qualidade da infância.

O desenvolvimento dessa cultura da infância, ao nível da prevenção e da intervenção reparadora e superadora do perigo, compete a todos.” 

Como estava certo: Pelo tratamento dado aos mais frágeis podemos avaliar a sociedade.

Os maus tratos às crianças são apenas o sintoma de um sociedade que não está bem e que acaba por se magoar a si própria.


Leão XIV, na alocução inicial do seu pontificado, falou da necessidade de uma paz que seja  desarmada e  desarmante, construída através do diálogo e da criação de  pontes.

Um coro universal das vítimas da  insensibilidade, devia todos os dias soar aos ouvidos dos líderes mundiais, reclamando justiça e paz.  Até que entendessem que os resultados das guerras são sempre o sofrimento de todos, dos perdedores mas também dos vencedores.

Uma cultura do cuidado, como o do samaritano que ajudou o estranho que encontrou doente no caminho é o sentimento que faz falta.


A cultura do cuidado é fundamental para vivermos como pessoas como seres humanos que existem  com os outros e em que os narcisismos não são determinantes. 

Uma cultura do cuidado é uma cultura da interdependência onde ninguém é descartável.

“...  quando chegamos a este planeta, somos desde o início da vida rodeados de cuidados diversos que se prolongam no tempo;  chega depois a altura em que devemos cuidar de outras pessoas e passaremos por momentos em que teremos de permitir que outros cuidem de nós, inclusive quando ainda esteja longe o fim da nossa vida. 

Estaremos preparados para assumir a interdependência que exige a nossa própria vulnerabilidade? Teremos consciência de que devemos cuidar de nós próprios, dos nossos entes queridos, do conjunto da sociedade e do mundo em que vivemos? 

Uma sociedade em que o bem-estar individual e o bem-estar coletivo andam de mãos dadas é mais humana, mais forte e muito mais comprometida.” (Isabel Sánchez, Cultura do cuidado )

 

 

Até para a semana.

 



 Rádio Castelo Branco


 




04/05/25

Para todas as mães


Conversa de mãe 

Olhem só para o meu lindo filho! 
Com suas franjas douradas de cabelo, 
Olhos azuis, bochechas vermelhas! 
Bem, pessoal, vocês têm um filho assim?
Não, pessoal, vocês não têm!
...


Para todas as mães.



24/04/25

Um caminho a continuar



Francisco veio de longe para ficar perto. Ficar perto dos mais vulneráveis. E este é um dos papéis que o Papa Francisco assumiu e que mais me tocou neste tempo que durou o seu pontificado.
Encontramos, certamente, diferenças com outros que o antecederam mas também continuidade. É o que acontece em relação à violência sexual contra crianças, jovens e pessoas vulneráveis. Se Bento XVI já tinha objectivado o papel da Igreja na eliminação deste grave problema da Igreja e da sociedade (Luz do mundo – O Papa, a Igreja e os Sinais dos Tempos – Uma conversa com Peter Seewald), foi Francisco que convocou a Cimeira no Vaticano sobre a protecção dos menores na Igreja (21 a 24-2-2019).
Também as Comissões diocesanas de prevenção e protecção de menores e pessoas vulneráveis foram criadas na sequência da publicação, pelo Papa Francisco, em 9-5-2019, da Carta Apostólica “Vos estis lux mundi” (“Vós sois a luz do mundo”) sobre a violência sexual no seio da igreja Católica. 

A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) decidiu criar a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica em Portugal, na Assembleia Plenária de novembro de 2021. A Comissão Independente apresentou em 13-2-2023, o Relatório da investigação efectuada. 


Em 5-2-2022, as Comissões Diocesanas, reunidas em Fátima, tomaram a decisão de criar a Equipa de Coordenação Nacional (ECN), integrando representantes das províncias eclesiásticas de Braga, de Lisboa e de Évora.

A CEP, na Assembleia Plenária de 25-28 de Abril de 2023, criou o Grupo VITA, apresentando-se como um organismo “isento e autónomo que visa acolher, escutar, acompanhar e prevenir as situações de violência sexual de crianças, jovens e adultos vulneráveis no contexto da Igreja Católica em Portugal, numa lógica de intervenção sistémica”. Entrou em funcionamento em 22-5-2023 e tem vindo a apresentar Relatórios de Actividades semestralmente.

 

Tendo em vista uniformizar procedimentos e garantir a adequada articulação entre VITA, ECN, Comissões diocesanas, Procuradoria-Geral da República, assim como  a actuação no apoio psicológico, psiquiátrico e espiritual das vítimas e agressores, em 16-11-2023, a CEP aprovou o “Guia de Boas Práticas” para o tratamento de casos de abuso sexual de menores e adultos vulneráveis, no contexto da Igreja Católica.

 

Em 25-7-2024, a CEP divulgou o Regulamento para atribuição de compensações financeiras às vítimas de abusos sexuais, que prevê a criação de duas comissões, a Comissão de instrução e a Comissão de fixação da compensação. Estão em curso estes procedimentos.

A CEP, na Assembleia Plenária de Novembro, aprovou uma Adenda com algumas clarificações ao processo das compensações financeiras, e também o alargamento do prazo de apresentação dos pedidos até 31-3-2025.


Em todo o país têm vindo a ser tomadas medidas de prevenção primária, tais como Ações de Formação para os diversos Agentes pastorais e a criação de mapas de risco e de códigos de conduta nos diversos sectores de intervenção da Igreja.


Esta breve nota histórica sobre a prevenção e protecção de menores e adultos vulneráveis no seio da Igreja Católica releva, no contexto atual de funcionamento das Comissões Diocesanas, a necessidade de articulação e cooperação entre as várias entidades com responsabilidades nesta área: as Comissões diocesanas, o Grupo VITA, a ECN, a CEP e as Dioceses.

Manifesta também o caminho percorrido e a percorrer na prestação de um serviço que deve dar confiança, segurança e cuidado a todas as vítimas de abuso dentro da Igreja. Pode ainda ser sugestivo daquilo que é necessário fazer na sociedade.

 

 




Rádio Castelo Branco







21/04/25

O vínculo do Amor



87. O ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude «a não ser no sincero dom de si mesmo» aos outros. E não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros: «Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que me comunico com o outro». Isso explica por que ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já que «a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte».



02/04/25

Histórico e ressentimento


Tudo o que fazemos, dizemos ou sentimos fica guardado na memória. E logo que isso acontece começa a haver história. 
Porém, sabemos que não há memória sem esquecimento como também sabemos que a memória nos engana e aquilo que pensamos ser um facto vivenciado por nós em determinadas circunstâncias objectivas, pode não ser bem assim. 

Seja como for, há um conjunto de memórias onde ficam guardados acontecimentos da nossa vida que constituem o "histórico" dessa mesma vida, a memória autobiográfica.
Esse histórico é fundamental para nos situarmos no mundo e faz parte da experiência que temos do comportamento de ir juntando acontecimentos, factos, pequenas e grandes coisas que vão ganhando ou perdendo importância e quando vistas no contexto podem ser amplificadas ou simplificadas... até nos dar jeito. 

O histórico tem um lado positivo quando ele nos serve para vermos a realidade tal como ela é, os factos e como aconteceram, e tem um lado negativo quando nos serve para justificarmos o nosso ressentimento. *
O que vem depois é o efeito gota de água que faz transbordar o copo. E infelizmente, há sempre uma gota de água que vem a calhar, quando nos dá jeito, para podermos justificar o nosso comportamento. 
Quando achamos uma oportunidade lá vamos nós buscar o histórico, o nosso ressentimento: no dia tantos fizeste-me isto, fizeste aquilo...
E sai todo um relatório de “deve e haver” em relação à nossa vida e à relação com quem naquele momento é fonte da nossa frustração e objecto da nossa raiva.

Esta interligação está muitas vezes na origem do ressentimento que existe entre pessoas, num casal, na família, no trabalho, nas instituições sociais e políticas.
Hoje o ressentimento está presente em muitas situações e visões da sociedade.
Há cada vez mais indivíduos ressentidas: vitimizados, ofendidos, magoados, ressabiados e melindrados...

Nós não somos computadores e não podemos apagar o nosso  histórico como fazemos ao nosso hardware. A nossa memória apaga alguns acontecimentos mas outros ficam presentes, ou são alterados fazendo com que demos interpretações dos factos que não correspondem à realidade.
Podemos passar por esses eventos e nunca mais pensar neles. Mas podemos também desenvolver o ressentimento. 

“O ressentimento pode fazer mal às nossas relações e ocasionar um conjunto de emoções negativas.” (Louise Leboyer, "Ces comportements cultivent votre ressentiment envers les autres au quotidien", Psychologies, 24 março 2025 )
“As pessoas guardam muito os seus ressentimentos porque se baseiam no profundo sentimento de terem sido injustiçadas.
Além do impacto nos nossos relacionamentos, o ressentimento causa mais danos à pessoa que o sente do que à pessoa a quem é dirigido. 
É por isso que é melhor tentar evitar cair neste ciclo negativo.“
Podemos evitar (Susanne Wolf) alguns comportamentos envolvidos na comunicação que podem ser fonte de ressentimento.
Por isso, uma comunicação saudável é uma boa prevenção: Estabelecer limites claros; evitar a manipulação ou relações interesseiras; ser coerente entre palavras e actos, valores e crenças; saber escutar... 



Até para a semana. 



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* "O ressentimento descreve uma reação emocional negativa quando se é maltratado. Não existe uma causa única para o ressentimento, mas a maioria dos casos envolve uma sensação subjacente de ser maltratado ou injustiçado por outra pessoa. Experimentar frustração e decepção é uma parte normal da vida. Quando os sentimentos se tornam muito opressores, podem levar ao ressentimento. Quando isso acontece, a confiança e o amor nos relacionamentos são quebrados e às vezes nunca reparados."  (Signs of Resentment - Web MD)




Rádio Castelo Branco