19/08/25

Florescer


Peggy Lee -  É só isso ? (Is that all there is?)


"Is that all there is?", música interpretada por Peggy Lee, descreve alguns eventos da vida, positivos e negativos: um incêndio presenciado na infância, o encantamento do circo e a experiência sem sucesso de um relacionamento amoroso. Seja qual for a situação, resulta sempre insatisfação e desilusão, algo está  sempre em falta. Que mais tem a vida para oferecer? Na festa e na desgraça, é só isso ? Na alegria e na tristeza, é só isso?
O tema é glosado de diferentes maneiras, como em "Estou além" (António Variações): “Esta insatisfação / Não consigo compreender / Sempre esta sensação / Que estou a perder”. Ou, mesmo quando "o homem do leme" enfrenta o destino com coragem para ultrapassar as dificuldades, "a vida é sempre a perder" (Xutos e Pontapés - "O homem do leme").

A "síndroma Peggy Lee" parece abranger muita gente para quem tudo é insatisfatório. De facto, em tempos de tédio, insatisfação permanente e vitimização imperiosa, não há mais nada para viver? Perante guerras tão miseráveis quanto cínicas não é caso para perguntar: a guerra é só isso? 
Ou mesmo quando em tempos mais pacíficos, a nossa luta interior, não nos deixa sossegados, a vida é só isso?

Os mais novos parece serem mais afectados por esta condição: como refere Pedro  Strecht.
"- Podia explicar o que quer dizer com a descrição da sensação: "estou mal, porque estou bem"? 
- Porque estar bem, para muitos pais e filhos, parece ser sempre insuficiente. Quando nos esquecemos que, em várias ocasiões, "menos é mais", somos facilmente levados a um padrão de constante sensação de falha ou falta porque, mesmo que já se tenha "tudo", parece sempre que "nada" chega. (Entrevista a Vanda Marques, "Pedro Strecht: Nunca existiram tantas crianças e adolescentes a sentirem-se sós", Sábado, 13 de Julho)

Temos alguns momentos, breves ou persistentes, de melancolia, passamos por momentos de tristeza e apatia que podem ser uma reação emocional normal a perdas, decepções ou situações difíceis da vida. A melancolia persistente por longos períodos é como a depressão e possui os mesmos sintomas: a pessoa não se interessa por nada ao seu redor, nenhum acontecimento traz prazer ou alegria e a vida deixa de ter interesse.

Também existe relação com o luto. "Contudo, a melancolia contém algo mais que o luto normal. Na melancolia, a relação com o objeto não é simples; ela é complicada pelo conflito devido a uma ambivalência. Esta ou é constitucional, isto é, um elemento de toda relação amorosa formada por esse ego particular, ou provém precisamente daquelas experiências que envolveram a ameaça da perda do objeto. Por esse motivo, as causas excitantes da melancolia têm uma amplitude muito maior do que as do luto, que é, na maioria das vezes, ocasionado por uma perda real do objeto, por sua morte. Na melancolia, em consequência, travam-se inúmeras lutas isoladas em torno do objeto, nas quais o ódio e o amor se digladiam; um procura separar a libido do objeto, o outro, defender essa posição da libido contra o assédio." ( Freud, Luto e melancolia)

Também, em Psicologia, falamos de alexitimia (palavra de origem grega: a-falta de, sem; lexis-palavra; thymus-emoção ou ânimo), utilizada pela primeira vez por Peter Sifneos, em 1967. A alexitimia é um construto que "designa a falta de palavras para descrever as emoções. Afetivamente conduz a uma grande dificuldade em reconhecer, descrever e discriminar sentimentos e emoções. Cognitivamente, há um estilo de pensamento muito particular, virado para o concreto e para o exterior e relacionalmente, há relações úteis, pragmáticas e superficiais. Existe uma incapacidade em perceber o outro com uma individualidade própria, os seus sentimentos, havendo portanto uma reduzida empatia e compreensão." (S. Pereira, Alexitimia, ITAD)

"Is That All There Is?" coloca a questão fundamental sobre o que é a vida e como podemos responder.
Os paraísos artificiais que invariavelmente levam ao meio do nada ou, definitivamente, a  lado nenhum, podem parecer que é por aí que encontramos resposta para a insatisfação e infelicidade mas, como neste caso, depressa se percebe "que tinha parado de ter qualquer esperança, sonhos ou objectivos. Chamei isso de meu momento Peggy Lee".  Então a droga é só isso?

Assim sendo, "Eu sei o que devem estar dizendo a si mesmos: Se é assim que ela se sente, por que ela simplesmente não acaba com tudo?
- Ah, não, não eu, eu não estou pronta para essa decepção final. Porque eu sei tão bem quanto estou aqui falando com você que quando esse momento final chegar e eu estiver dando meu último suspiro, estarei dizendo a mim mesma:
É só isso, é só isso?
Se é só isso, meus amigos, então continuemos dançando.
Vamos beber  e divertir-nos.
Se é só isso."

Não é só isso. Não pode  ser só isso: viver por viver. Podemos sempre superar as dificuldades, superar o trauma. Podemos, sempre, ser resilientes e prosperar, se quisermos. Podemos fazer o caminho da psicoterapia, o caminho do florescimento,  o caminho da espiritualidade e, se é pessoa de alguma fé, o caminho da ressurreição.

A falta de um propósito para a vida parece fundamentar esta falta de interesse pela vida. logoterapia (Victor Frankl), diz-nos que a vida tem um sentido e, se assim é,  pode se ser o começo da psicoterapia/cura.
M. Seligman criou o modelo de florescimento constituído pelos seguintes elementos: emoção positiva, envolvimento, relações,  significado, realização pessoal (PERMA).
Florescer permite uma cultura de cuidado, do próprio e do outro, fazendo o mundo mais bonito por dentro, e, ao  cuidar da natureza, fazendo o mundo mais bonito por fora. A beleza vem da escolha: podemos escolher entre a "vida vazia" ou "a vida plena". Como diz Epicteto, "Não és o teu corpo nem o teu penteado, mas sim a tua capacidade de escolher bem. Se as tuas escolhas forem belas, então serás belo". (Ryan Holiday e Stephen Hanselman, Estoico todos os dias, p. 110)
"A vida vale a pena ser vivida", mesmo contra "os pensamentos catastróficos automáticos" (Seligman, p. 65) e "Todos podemos dizer sim a mais bem-estar" (p. 257). 
Florescer é, afinal, encontrar o bem-estar na vida, como é definido por Seligman. E isso está a acontecer em muitos países. Nuns mais do que noutros. Felicia Huppert e Timothy So, da Universidade de Cambridge, definiram e avaliaram o florescimento em  23 países da União Europeia (2009). A Dinamarca liderava o ranking com 33% da população florescendo. E Portugal estava em penúltimo lugar com  cerca de 7%. (pp. 41-43 e 254-257) 

No início de Agosto, mês de férias, e, portanto, mês de sair da azáfama quotidiana de procura incessante das riquezas - vaidade - a primeira leitura, na liturgia de domingo, apresenta um texto lindíssimo do Eclesiastes: vaidade das vaidades tudo é vaidade. 
Salomão (Eclesiastes), suposto autor, desiludido e amargurado depois de uma vida de glórias e prazeres, constata a inutilidade de todos os esforços do homem e conclui que tudo na vida é “vaidade” ou “ilusão”.
Então, onde procurar o bem-estar? Se tudo é vaidade, tem de ser noutro lugar para que tudo faça sentido.

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As referências são de M. Seligman, A vida que floresce, estrelapolar/Leya, 2011.