08/10/17

Mãe e filhos


1. É importante falar, escrever e fazer a divulgação da relevância  para o desenvolvimento da relação da mãe com os filhos. Esta interacção privilegiada, a vinculação (1), coloca em relevo o importante papel que a mãe assume nesse desenvolvimento.  É um comportamento inato dos primatas e em particular dos humanos.
"Embora o conhecimento esteja longe de ser definitivo (2), a investigação permitiu já concluir que os laços que se estabelecem entre mãe e filho constituem o primeiro modelo de relacionamento humano do bebé, potenciando uma sensação  de segurança e de autoestima positiva. Além de que a resposta dos pais aos sinais do bebé também pode influenciar o desenvolvimento social e cognitivo do bebé. Não há, contudo, uma fórmula mágica: é uma experiência pessoal e complexa que não pode ser forçada." (p. 16)
Este processo de vinculação começa muito antes do parto e continua depois do nascimento. De facto, "quando o parto acontece, já se pode dizer que os dois se conhecem, sendo reconhecido que a ligação afetiva que se estabelece durante a gestação é um dos processos mais importantes desses nove meses. É verdade que essa intimidade é sensível a um conjunto de variáveis, nomeadamente a idade da mãe, o apoio familiar e social recebido, o contexto da própria gravidez. Mas também é verdade que, após o nascimento é fundamental consolidar os laços que se começaram a gerar durante a gestação." (p.15)

Há situações, em que por diversas circunstâncias (falecimento, separação forçada pela guerra, acidentes, doença...) a mãe não está presente, e a vinculação é feita a pessoas de referência da criança... Mas esta é uma situação inultrapassável e não há outra resposta mais adequada para o desenvolvimento adequado e seguro da criança.
A adopção surge também como uma dessas possibilidades em que o superior interesse da criança passa por este tipo de resposta, sendo preferível  à institucionalização, p ex..


A partir dos anos 50 do século passado, a psicologia passou a dispor de um conjunto de dados resultante da investigação animal e humana que fundamentaram com segurança este processo de interacção.
Há alguns anos, R. Zazzo recolheu em livro a opinião de vários especialistas sobre  a vinculação. A mudança conceptual que vinha trazer em relação à necessidade primária que a vinculação representava, mostrava uma perspectiva diferente da  relação mãe-filho.  Ficava em questão quer o conceito da psicanálise enquanto defensora de que essa vinculação era secundária em relação à necessidade primária de alimentação, como o do behaviourismo que seria secundária em relação ao reforço.

Para Bowlby (O vínculo mai-filho e a saúde mental, Galiza editora) "a vinculação não é exclusiva da nossa espécie já que existe igualmente tal como o demonstraram outros autores (como Harlow, Hinde e Lorenz) na primeira infância de muitos mamíferos e algumas aves." (p.13)
A teoria da vinculação (apego) é um modo de conceptualizar a tendência dos seres humanos a estabelecerem fortes vínculos afectivos com outros seres particulares e de explicar as múltiplas formas de aflição emocional e transtorno da personalidade que compreendem a ansiedade, a ira a depressão e o desapego emocional a que dão lugar a separação e a perda não desejadas" (p. 27)
O DSM caracteriza a Perturbação reactiva de vinculação da primeira infância e início da segunda infância. (No Brasil, "Transtorno de apego").

2. A gestação de substituição, aprovada em conselho de ministros, (Decreto Regulamentar n.º 6/2017- DR n.º 146/2017, Série I, de 2017-07-31) (3) certamente tem muito a ver com o que se disse antes  e os senhores deputados devem ter ponderado o assunto, seriamente. De facto, a mãe é indispensável para o desenvolvimento da criança. Por isso, para este efeito há necessidade de uma declaração de psiquiatra ou psicólogo favorável à celebração do contrato de gestação de substituição".
 Apesar do risco, parece compreensivo que haja situações excepcionais em que a gestação de substituição tenha  lugar.

Por outro lado, há cláusulas que não se sabe como vão ser resolvidas, na prática, e como vai ser feito o seu controlo, como:
"A gratuitidade do negócio jurídico e a ausência de qualquer tipo de imposição, pagamento ou doação por parte do casal beneficiário a favor da gestante de substituição por causa da gestação da criança, para além do valor correspondente às despesas decorrentes do acompanhamento de saúde efetivamente prestado, incluindo em transportes".

3. Seja como for, o DR estipula as condições da gestação de substituição. Fora destas situações e fora dos limites impostos, trata-se de um negócio que nunca deixará de ser outra coisa senão a compra e venda de crianças.

4. O caso Cristiano Ronaldo, como escreve H. Raposo ou Isabel Stilwell, tendo em conta os direitos da criança a ter uma família não cabe nesta situação porque a legislação portuguesa não o permitiria. Mas a moral também não.  
Podemos ser fãs de Ronaldo, apreciar as suas atitudes e comportamentos nas diversas  situações desportivas, reconhecer a sua caridade ou filantropia para com os outros, nomeadamente as atitudes relativamente a crianças com dificuldades de saúde ou outra ordem, acompanhá-lo até ao fim do mundo, porém, o nosso caminho tem, necessariamente, que acabar aqui. Como Saramago, "até aqui cheguei", mas não daqui em diante. (4)

5. Do ponto de vista psicológico, qualquer situação deste tipo, configura uma situação de risco de vinculação. Ou seja, uma situação de risco em relação aos direitos da criança.

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1. Maria Rita Silva, «Mãe e filhos: uma relação única», PH, nº 15, Maio-Junho 2017.

2. Discute-se a questão da vinculação e critica-se que "La relation mère-enfant devient le seul objet de l’évaluation, elle est donc réalisée indépendamment de la relation paternelle (ici les absents n’ont pas toujours tort), de l’environnement familial élargi et du contexte culturel, économique et social dans lequel l’enfant a évolué." Le cercle psy
" Surtout diverses enquêtes, dont celles qui ont servi de base à la notion de résilience, montrent que bon nombre d’individus mal partis déjouent tous les pronostics. Inversement, d’autres tournent mal alors qu’ils ont bénéficié d’un soutien parental sans faille. L’attachement sécure est un atout, pas une baguette magique. Ni sans doute un ingrédient indispensable." J.- F. Marmion, Le cercle psy

3. A designação  "barrigas de aluguer" mostra bem que a natureza deste negócio não se coaduna com a letra ou o espírito do normativo  (Decreto Regulamentar n.º 6/2017DR).

4. Mesmo com a militância política de Saramago é necessário reconhecer-lhe a grandeza moral de condenar o regime cubano. De facto, quando "O governo cubano executou na sexta-feira passada três homens sumariamente condenados por assaltar uma balsa com o propósito de fugir para os EUA" , Saramago escreveu: "Até aqui cheguei. De agora em diante, Cuba seguirá seu caminho, e eu fico onde estou. Discordar é um direito que se encontra e se encontrará inscrito com tinta invisível em todas as declarações de direitos humanos passadas, presentes e futuras. Discordar é um ato irrenunciável de consciência." 16 de Abril de 2003, Folha de S. Paulo.



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